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Por Cesar Brod
Data de Publicação: 14 de Abril de 2008
L'Instant, de Guerlain. Naquele momento, o que eu queria mesmo era um instante. Ela me tirou da tristeza e do sério num instante. Eu nunca tinha visto alguém demonstrar perfume daquele jeito. Acho que não fazia parte da demonstração ela ter olhado para trás, para mim, e ter repetido "L'Instant...". Acho que não fazia parte da demonstração tudo o que aconteceu dali em diante. O instante. L'Instant. Em francês é mais bonito. Em Paris mais ainda.
Free Shop. Charles De'Gaule. L'Instant, de Guerlain. Passou bem perto de mim. A guria era virada em pescoço. Os cabelos presos de um jeito rebelde em um coque que parecia ter sido feito às pressas, num instante. Um instante estudado. Cuidadosamente desgrenhados, alguns fios de cabelo escorriam pela sua nuca. Ela não devia ter olhado pra trás, pra mim. Tudo podia ter ficado no instante inicial. Tenho sérios problemas com medidas de tempo: instantes e momentos, dias, horas... Que horas são? Quanto tempo durou? Não sei...
De repente, eu já estava no fim do pescoço. De repente é uma marca no tempo. Não é momento nem instante. Naquele momento, toda a espinha era pescoço, que se acabava no instante em que as costas mudavam de nome. Eu nunca soube muito bem o que queria, mas naquele momento, eu queria um instante. L'Instant. Esse Guerlain é bom de marketing.
Eu devia ter me controlado, mas a culpa foi dela, do instante, L'Instant. O pessoal da loja podia ter me parado antes. Tenho problemas com medidas de tempo, e nem uso relógio. Depois que ela repetiu L'Instant e eu mordi delicadamente sua nuca, não tinha mesmo mais volta, mas tinha todo o tempo do mundo para evitar o depois. Só que eu não sabia do depois. Naquele instante tudo virou urgência. Ela podia ter fugido, me batido, mas não. Arqueou as costas e me olhou com um desejo imediato, de momento, num instante. Não virou todo o corpo, só a cabeça. Mordeu o lábio inferior e não chegou a repetir "L'Instant" pois eu ocupei a sua boca com a minha. Era a hora de parar. O pessoal da loja devia saber que isto não ia dar certo. Eles deviam ter experiência com estas coisas. Ou éramos inéditos? Inédito é outro espaço de tempo, um conjunto de acontecimentos que não aconteceu antes.
Já não eram mais poucos os fios desgrenhados. Tudo estava desgrenhado. Desgrenho é uma coisa louca, ainda mais na nuca. O vestido não deixava entender muito bem a divisa entre as costas e a nuca. A guria tinha um pescoço sem fim, mas eu devia ter parado pela metade para não apavorar os transeuntes. Transeunte é palavra que só se usa quando se escreve. Ao menos eu acho. Nunca abordei ninguém chamando "Ei, transeunte!".
Agora ela já estava virada de frente pra mim, mas eu nem a via. Não enxergo muito bem de perto. Hipermetropia. Ela devia ter umas cinco mãos. Eu tinha sete. Todas estavam entre o pescoço e as pernas dela. Duas agarradas em cada banda da bunda. Ela podia não ter correspondido. Devia ter corrido quando olhou para mim pela segunda vez e percebeu o desgrenho nos meus olhos, a estranheza dos transeuntes. Ela correu pro lado errado, pro meu lado. Deu no que deu. Mas polícia também foi exagero. Quem chamou foi um transeunte. Só pode... Transeunte filha da puta!
Também, quem mandou ela gemer baixinho quando mordi sua nuca? Onde está o profissionalismo? Quando tudo começou eu estava com as duas mãos ocupadas. Quando terminou também, mas com outras coisas. Quem planejou aquele vestido já estava pensando em sacanagem. Duas alcinhas e deu pra bolinha. Tchum, tchum, chão. Sem sutiã e com uma calcinha que também nem contava. Mas ela não precisava ter arqueado as costas. E eu não tinha nada que ter largado as minhas coisas todas no chão e nem me ajoelhado para seguir a trilha do pescoço abaixo. Ela tinha uma pintinha no ombro. Não fosse a pintinha, tudo poderia ter sido evitado. Foi o que eu falei pro delegado.
Eu mordia a bunda dela no exato momento em que a polícia chegou. Boa parte da platéia no aeroporto nos aplaudia e protestava contra a polícia. Adoro Paris. Liberté! Liberté! Teve gente que achou que estávamos em um filme. Erraram. Vivíamos um instante. L'Instant. Instantes são para ser fugazes, surpreendentes. A diferença entre um instante e um momento é a surpresa. Um instante é um momento inédito e romântico.
Não a vi mais depois que ela já tinha ofendido toda a polícia do aeroporto, de Paris, da França, do mundo. "Merde" era o palavrão mais leve que ela pronunciava. Me liberaram momentos antes de meu avião sair. Depois da última chamada. Ainda quase perdi o vôo porque ela mordeu o lábio inferior de novo, desta vez o meu. Despedida é outra marca no tempo. Ela mordeu com força para garantir que eu não esquecesse. Ainda tenho a cicatriz. Ela marcou o instante. L'Instant. Não se deve fazer isto. Não se deve fazer tanta coisa... A não ser em Paris. Adoro Paris.
Conto publicado originalmente no NÃO
Cesar Brod usa Linux desde antes do kernel atingir a versão 1.0. Dissemina o uso (e usa) métodos ágeis antes deles ganharem esse nome. Ainda assim, não está extinto! Escritor, consultor, pai e avô, tem como seu princípio fundamental a liberdade ampla, total e irrestrita, em especial a do conhecimento.
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