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Poliândrica

Por Cesar Brod

Data de Publicação: 08 de Outubro de 2013

Seus olhos de um oblíquo entre felino e víbora. Piscadelas rápidas, quase imperceptíveis sob a luz parca. Sua boca e nariz pequenos, orelhas pontiagudas, sem lóbulos, quase coladas à cabeça - todos meros coadjuvantes de seus olhos. Às vezes passa a língua nos lábios e os deixa com um vermelho intenso. Penso se ainda sangra depois do chute que dei em sua boca quando quase sucumbi ao sono e, consequentemente, a seu ataque.

Ela sabe que me distraio ao olhar seus lábios e, célere, move-se centímetros - se não milímetros - em minha direção. Estou mais atento agora. O choque de adrenalina comprou-me algum tempo, não sei quanto. Ela oscila o corpo em movimentos lentos, pendulares e, ainda assim, sensuais. Talvez minha única chance seja sua natureza. Começo a excitar-me, novamente, com o vagarear ondulante de suas coxas fortes, iluminadas em faixas pelas frestas da janela. Se ela sentir que posso servir-lhe mais um jorro de sêmen sadio, eu talvez consiga escapar, ter melhor sorte que os outros dois cujo cheiro começa a empestear o quarto.

Ela desvia, afinal, seus olhos de mim, o que pode ser o sinal de uma nova côrte ou um simples truque para que eu baixe a guarda. Ela serve-se de um pequeno pedaço do cérebro do seu segundo par. Seu corpo já deve estar processando os nutrientes que estimulam as enzimas a liberarem seus quatro ou cinco óvulos para a competição dos espermatozoides que já lutam, entre si, em seu saco uterino. Outro par ainda aguarda, em sua ansiosa juventude, a meu lado. Neste cio ela pode nem lhe dar atenção ou - o que ele espera - ela pode me ignorar, no último minuto, e fazer amor com ele. Neste momento, ainda não sei se meu desejo é maior por um ano adicional de vida ou por apenas meia-hora, muito intensa, dentro da nossa fêmea. Há pouco, no torpor pós-gozo, cheguei a desejar a sorte dos outros pares e não ter resistido ao ataque mortal durante o orgasmo.

A natureza é sábia. Se consegui escapar há boa possibilidade que meus espermatozoides sejam, eles próprios, rápidos e capazes de fugir dos concorrentes, já cansados de lutar entre si, e penetrarem em um de seus óvulos, permitindo-me um descendente que poderei conhecer, ainda que possa ser impossível distingui-los como meus, entre os demais concebidos nestes dias. Por outro lado, é sabido que os espermatozoides daquele par, cujo cérebro é comido pela fêmea, ganham mais força e resistência. Tudo é muito bem engendrado para a melhoria contínua de nossa espécie.

Os humanos da Terra ficaram horrorizados com nossa organização social. Faziam perguntas inimagináveis para nós. "Quem assume o trabalho do par morto, cujo cérebro serviu de alimento a sua fêmea?". Eles não entendiam - e não sei se já entendem - o real conceito coletivo de uma sociedade plenamente ciente de sua missão de preservação e fortalecimento de seus membros.

Uma de nossas fêmeas passou a ser cultuada, na Terra, por escrever um livro explicando, de forma muito didática e dentro do paradigma mental terráqueo, nossa forma de vida. Dizia ela: "Amamos nossos pares. Não vemos como morte, mas como ação contínua da natureza, que seus cérebros sirvam como o alimento de nosso cio, que melhora nossa descendência. Nossos pares permanecem, em corpo e espírito - portanto, em vida! - na perpetuação de nosso coletivo."

Ela nunca desejou, entretanto, tal culto. Jamais antecipou a proporção tomada por suas boas intenções. Muitas mulheres da Terra passaram a matar seus maridos e a comer seus cérebros para basear, depois, sua defesa em uma natureza feminina e, acima disso, humana, subjugada por um sistema político-econômico artificial, patriarcal e machista.

Nossa sociedade sequer interferiu e, de fato, pouco tomou conhecimento da evolução das discussões na Terra. Partimos de conceitos de sociedade, amor, comunidade, trabalho e prole que são muito diversos dos habitantes daquele planeta. Ainda assim, em algum lugar de nosso passado longínquo, reside um ancestral comum.

Enquanto divago, entre excitado, meditabundo e sonolento, sou atacado por minha fêmea e a contenho. Ela, também cansada, cede a meu controle e, dando sinais de que logo se entregará ao sono, vira-se de costas para mim, arqueia suas costas e abre bem suas pernas, facilitando minha penetração e nosso último gozo antes do próximo ano. Seu par mais recente aceita, consternado e compreensivo que, em três dias, serei eu a acordar ao lado de nossa fêmea, cuidando dela até que dê cria e passa a cortejar novos pares com quem viveremos, novamente, o que vivemos agora.

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Sobre o autor

Cesar Brod usa Linux desde antes do kernel atingir a versão 1.0. Dissemina o uso (e usa) métodos ágeis antes deles ganharem esse nome. Ainda assim, não está extinto! Escritor, consultor, pai e avô, tem como seu princípio fundamental a liberdade ampla, total e irrestrita, em especial a do conhecimento.

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