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Por Cesar Brod
Data de Publicação: 15 de Novembro de 2013
A saudade é um sentimento dinâmico, muda de uma mistura entre dor e perda para uma certa alegria nostálgica, o conforto da história de um convívio do qual só permanecem lembranças de coisas boas. Ao menos é assim para os que são da minha geração e das anteriores.
Na semana passada visitei a Dudinha e seus pais, a Jô e o Junior. Como fazia bastante tempo que não nos encontrávamos, resolvemos fazer uma sessão de fotos, claro que usando a TV e o PlayStation. Rimos, mais uma vez, com nossas festas e acampamentos, em especial um em que passamos acordados a madrugada inteira cantando e dançando Giselda do Ultraje a Rigor. A cada vez que a música terminava, alguém pedia: põe aí a número nove (a mesma, de novo). O vídeo da música está aí embaixo.
Não é difícil imaginar, com a tecnologia que já existe hoje para a criação de imagens realistas em três dimensões, que as fotos daquele acampamento mais as vozes gravadas de todos os que participaram dele e vídeos dessas pessoas em várias situações posteriores possam transformar-se em uma recriação interativa daquele momento, do qual a Dudinha não participou, mas que poderá vir a participar, interagindo com seus pais em sua versão mais jovem. Quem sabe, ainda, muito depois de eu não mais existir, a Dudinha possa mostrar para seus próprios filhos e netos uma versão holográfica do tio Cesar cantando o Jacaré.
Além disso, com tudo o que deixei registrado em artigos como esse, livros, entrevistas em áudio e vídeo, será possível, para a minha versão holográfica, bater um papo com as crianças depois de cantar a música.
Como os vulcanos, estamos usando a internet (ou a nuvem) para armazenar nosso katra, nossa essência vital, o conjunto de todas as nossas memórias e ações. Mesmo que faltem algumas lacunas, mecanismos de inteligência artificial, cada vez mais evoluídos, serão capazes de preenchê-las. Acho que não falta muito para começar a existir o debate legal sobre a permissão - ou não - da recriação de indivíduos holográficos na forma de fantasminhas camaradas de aparência absolutamente realista.
Além do que deixamos, pública e voluntariamente, como nosso legado espalhado pela web, há todo um conjunto de informações capturadas de forma involuntária. Com softwares de reconhecimento facial é possível, por exemplo, juntar os vídeos de bancos e seus caixas automáticos, postos de gasolina, elevadores e recriar momentos passados da vida de um indivíduo. Abasteci o carro no dia da visita à Dudinha. No posto, haviam câmeras. Uma busca no Google do futuro (do futuro?) permitirá que, por reconhecimento facial, eu seja identificado e associado ao carro e sua placa. A partir daí, meu roteiro pela cidade, capturado por câmeras em vários lugares, pode ser recriado. Extrapolando, as ações de uma pessoa podem ser recriadas. A invasão da privacidade, com o avanço da tecnologia, será ainda maior depois que a pessoa já estiver morta e não mais puder lutar contra isso.
Não há muito sentido em se querer ir contra isso. A história nos ensinou que, se existe um determinado meio de fazer algo, esse algo será feito. Indo um pouco mais adiante, nada nos impedirá de, conhecendo o mecanismo do genoma humano, o funcionamento do cérebro e tendo os registros de vida de uma pessoa, recriá-la. O que hoje pode parecer macabro, no futuro pode ser lugar comum. A Dudinha, agora já avó, encomenda para a empresa Genomante S.A. uma versão descartável do tio Cesar para animar a festa de aniversário de um de seus netos.
Assustador? Pensa que algumas tribos humanas, afastadas do que chamamos de civilização, ainda pensam que a fotografia rouba a alma de uma pessoa. Nos adequamos com mais tranquilidade a modernidades do que pensamos e muita coisa do que existia na primeira versão de Jornada nas Estrelas, para a TV, nos anos 1960, já é realidade nos dias de hoje. Não podemos ter medo pois o medo entreva, impede o avanço. Até mesmo questões de privacidade e respeito à individualidade podem ser flexíveis, dependendo do cenário.
Minhas filhas me darão netos e netas e, estes, gerarão meus bisnetos. Cada um de meus bisnetos terá oito bisavós. Imagine uma sessão de contação de histórias, na festa de aniversário de um de meus bisnetos. Decidiu-se que a Genomante S.A. providenciará os bisavôs descartáveis para uma tarde de convivência com as crianças. Eu, sabendo que os outros bisavôs concordaram com sua recriação (e como eu saberia disso, de antemão?), impediria o convívio de meus netos com uma versão, ainda que volátil, minha? Como eu me sentiria, hoje, se meus bisavôs houvessem ordenado a queima de suas fotos e todos os demais registros deles após a sua morte?
Minha falecida tia-avó Terezinha Brod recuperou muitos registros de nossos antepassados em uma extensa pesquisa. Além da árvore genealógica de minha família, temos muita história e informações que, não fosse esse trabalho, junto com mais pesquisa e a compilação de Roque Bersch, não teria possibilitado o livro Ondas de Migrantes: Crônicas de 138 anos de Brod no Brasil.
Claro, há a diferença fundamental de que meus bisavôs podem não ter deixado registros em quantidade suficiente para que as lacunas de sua consciência sejam totalmente preenchidas por mecanismos de inteligência artificial. Será que os registros de nossa geração permitirão, de verdade, tal coisa? E será que o Cesar, virtual e descartável, daqui a 150 anos, será capaz de responder, de forma verdadeira e sincera, a uma pergunta embaraçosa feita por um dos amiguinhos de meus bisnetos? Sua consciência será recriada a ponto de decidir o que o Cesar original gostaria, ou não, de tornar público? Ele terá plena ciência do fato de ser uma pessoa artificial, recriada para uma tarde de diversão com os bisnetos que sua matriz real não chegou a conhecer?
Cesar Brod usa Linux desde antes do kernel atingir a versão 1.0. Dissemina o uso (e usa) métodos ágeis antes deles ganharem esse nome. Ainda assim, não está extinto! Escritor, consultor, pai e avô, tem como seu princípio fundamental a liberdade ampla, total e irrestrita, em especial a do conhecimento.
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