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Por Jaime Balbino
Data de Publicação: 23 de Janeiro de 2007
No modelo wiki, da forma como o definimos no artigo anterior, presta-se melhor para organizar idéias/conhecimento já em seu estágio conceitual, isto é, num formato que organize o que de fato se conhece do mundo. O uso de uma linguagem padronizada - com poucas, mas eficientes, regras que permitam ao leitor/autor reconhecer fatos, hipóteses, teorias e ligações entre saberes - valoriza e eterniza seu conteúdo, além de organizar o constante trabalho de atualização. As estratégias de pesquisa e a estrutura da linguagem científica ajudam bastante neste processo de organização, reconhecimento e universalização do conteúdo.
Aos que pensam que a "cientificação" do Saber tende a ser prejudicial para o processo de apropriação do próprio Saber, retirando Dele outras percepções e outros elementos não-quantitativos, como paixão ou encantamento; é importante refletir mais sobre o real papel da(s) linguagem(ns) no processo de apropriação do conhecimento. Talvez percebam que, quando utilizado num processo reflexivo profundo e "multi-lingual", o modelo científico representa um momento importante, senão definitivo, para a reflexão e sistematização. É neste estágio que o indivíduo conquista a propriedade para argumentar sobre aquilo que aprendeu e conhece; e é através dele que a coletividade abandona o "senso-comum" em benefício do conhecimento.
Como dito, isto reflete o modelo wiki já apresentado, e creio que esteja bem próximo do uso que dele fazem a Wikipedia e outras iniciativas públicas, particulares e empresariais pelo mundo. Mas é possível utilizar o wiki como um repositório informal, onde o conhecimento é apresentado de maneira pessoal e as argumentações convergentes e divergentes surgem como num web-fórum tradicional, porém sob um outro modelo de gerência, apresentação do conteúdo e participação dos membros. Nada impede que metodologias de trabalho em grupo utilizem wikis desta forma (o primeiro wiki muito se assemelha a uma página pessoal), mas, particularmente, prefiro utilizá-lo para sistematizar o conhecimento, aprimorando a capacidade de argumentação do grupo e estimulando as percepções científicas. Na minha opinião, os blogs - ou diários eletrônicos - apresentam maior semelhança com os web-fóruns, trazendo ainda mais controle sobre a condução e a mediação da discussão, podendo ser utilizados para tarefas nas quais o debate informal de idéias é o objetivo (por exemplo, um professor pode colher informações importantes através de um blog particular de opinião, no qual ele escreva sobre assuntos diversos e permita o comentário espontâneo dos alunos).
Em educação, uma atividade que já pode ser feita em qualquer escola que possua um laboratório de informática tradicional (com os micros em rede e com conexão regular à internet) é a colaboração direta com a Wikipedia, onde os alunos e professores assumem a manutenção ou criação de verbetes. Pode-se trabalhar algum conceito ligado ao currículo escolar ou trabalhar alguma coisa local, como um evento tradicional, personagem, lugar ou mesmo o próprio bairro, escola ou cidade.
Mesmo sendo uma atividade que envolve poucos recursos e conhecimentos, como tudo em educação ela exige um planejamento cuidadoso. No mundo wiki a motivação é fundamental para o envolvimento e a participação efetiva, assim é importante que o corpo docente e os gestores da escola estejam envolvidos e conscientes do potencial da atividade. É importantíssimo que estes profissionais já tenham realizado alguma colaboração e que reconheçam a Wikipedia e o modelo wiki como ferramentas válidas para a construção do conhecimento (há aí uma questão de coerência metodológica, responsável direta pela qualidade do ensino).
A atividade com a Wikipedia deve estar relacionada com a rotina curricular e deve ser multidisciplinar, de maneira a estimular (e não limitar) as diversas abordagens possíveis. Várias atividades paralelas podem e devem ser utilizadas para desenvolver os temas dos verbetes. Um grande tema (a história da cidade ou do bairro) ou vários pequenos temas não relacionados podem ser escolhidos e trabalhados, sempre em grupos médios ou grandes.
A avaliação deve se basear na qualidade global dos verbetes criados e, neste caso, é indissociável da qualidade do trabalho de toda a escola. Caso os objetivos não sejam alcançados e o material não for representativo de um processo coletivo de construção do conhecimento, a escola deve rever a metodologia utilizada, tendo sempre em mente que é possível utilizar seu espaço para a construção do conhecimento de maneira coletiva, dando aos alunos a oportunidade de se apropriarem deste conhecimento através de uma trajetória que culmine em sua própria produção.
A primeira solução apresentada pela OLPC para o problema da produção de conteúdo para o seu laptop foi a Wikipedia, incluindo-se aí uma versão infantil/escolar, com a linguagem adaptada às séries iniciais, já que a maioria do conteúdo é voltada aos adolescentes e adultos.
A idéia de se ter um repositório primário global para pesquisas escolares é estrategicamente vantajosa para as escolas. Este tipo de ação tornaria mais fácil traduzir, atualizar, ligar, colaborar e acompanhar conteúdos educacionais. A partir deste repositório inicial as demais fontes surgem e a "árvore" se forma. Isto não impediria a busca de outras fontes e nem seu ligação com os textos em constante mutação da Wikipedia (eu mesmo prefiro manter conteúdo fora dela, ligando-o a ela quando considero o assunto relevante e inédito de alguma forma).
Pesquisar na Web é muito mais difícil que digitar uma palavra-chave no Google. E eu diria também que é quase uma arte. Se quisermos saber realmente sobre um assunto, antes de podermos nos dar por satisfeitos, teremos que ir a centenas de textos e, dependendo do assunto, a maioria deles estará em outra língua, como o inglês. Os blogs mantidos por particulares quase anônimos são muito úteis em organizar e qualificar informação. Os próprios alunos e professores, como já foi dito, poderiam mantê-los também, como portfólios públicos.
Para aqueles professores que preferem trabalhar com múltiplas fontes (e que provavelmente não utilizam livro didático), é preferível, ao invés de concentrar-se somente numa única fonte, como a Wikipedia; trabalhar com referências dispersas previamente selecionadas e que até representem alguma diversidade de visões sobre o tema. Na minha opinião, esta é uma contradição aparente que de fato não limita ou diminui as possibilidades de pesquisa do aluno, principalmente porque o modelo wiki comporta o contraditório, cabendo ao pesquisador, em ambos os casos, exercitar tipos idênticos de percepção.
Todos nós temos algum lugar preferencial aonde vamos quando queremos iniciar a aprendizagem sobre algo. Alguns vão ao dicionário, outros à enciclopédia, outros ao Google/Yahoo, outros vão à biblioteca da faculdade, a um colega/amigo/professor, programa de televisão, visita ao bosque/cidade/família, etc... Partir de um ponto inicial, confiável e já familiar não é uma limitação do pensamento analítico ou "preguiça". Será o processo desencadeado a partir daí que definirá o quão original é o trabalho.
Como referência inicial, a Wikipedia (ou qualquer outro repositório criado com o mesmo propósito e com o mesmo respaldo público) teria muitas vantagens, sem se tornar o único meio ou fim da pesquisa escolar: controle, agilidade, dinamismo, manutenção, modelo inovador, concentração de esforços, padronização da linguagem e dos documentos, etc. Um professor poderia ter mais segurança em apontar a Wikipedia como referência primária, pois saberia que o material lá estaria adequado na linguagem e na abordagem, com referências externas que permitem um bom começo para as atividades (mas não as esgotam).
Caso o texto da Wikipedia esteja inadequado, defasado ou incompleto, ele mesmo pode acrescentar ou corrigir a falha (se conseguiu detectar o problema é razoável supor que também tem condições de solucioná-lo - pelo menos de uma maneira satisfatória).
O professor ou um monitor especializado também pode acrescentar ou retirar os links externos que julgar inadequados ou quebrados. Ele também pode comentar aqueles que não são interessantes em algum tipo de atividade, sem necessariamente apagá-lo.
Um professor (ou um monitor/aluno/funcionário indicado por ele) pode traduzir/adaptar verbetes da Wikipedia ou de outras obras em creative commons/copyleft, de livre distribuição, cujos direitos autorais já caducaram ou que tiveram autorização do autor. Nestes casos a tradução e mesmo a cópia integral do documento é permitida (todos os verbetes da Wikipedia estão em creative commons ou em licenças equivalentes, conforme identificado no rodapé de todas as suas páginas).
Notemos que, no fundo, o professor não estaria fazendo nada mais do que o normalmente esperado para a preparação de suas aulas: a escolha dos textos e referências iniciais; a pesquisa por atividades e exemplos significativos para o processo de ensino-aprendizagem; a análise dos possíveis caminhos a seguir; o olhar sobre o trabalho de outros professores; a revisão/correção/complementação das fontes iniciais que serão utilizadas.
Mas ainda há outras vantagens que tornam o uso de um repositório primário coletivo do tipo Wikipedia ainda mais relevante:
1. Quando um professor contribui, modifica, acrescenta, corrige e comenta um material coletivo que será utilizado nas suas turmas ele também está ajudando a criar "boas práticas" de trabalho em sala de aula. Ele está indicando como trabalhar um tema, está repassando a experiência que já teve, ele está apontando possíveis novas abordagens. Outros professores. Em suas próximas aulas, irão experimentar e realimentar este trabalho, desta vez trazendo sua própria experiência.
2. Alunos das mesmas séries ou de séries superiores, assim como voluntários ou professores conteudistas pagos, podem atuar como monitores, criando e revisando verbetes, reorganizando-os para que reflitam as diversas abordagens "bifurcadas" que eventualmente surjam. Afinal, num wiki o material editado nunca se perde. Versões antigas podem sempre ser lidas e reabilitadas ao texto mais atual.
3. Tais atividades de produção e revisão ajudariam alunos com as mais diversas habilidades cognitivas a ampliar seu conhecimento especifico num assunto de seu interesse; além de aprimorar linguagem, métodos de pesquisa, organização e revisão. Tudo isso numa plataforma que trabalha com o melhor padrão atualmente aceito para gerência do conhecimento.
4. A constante ampliação dos verbetes pela inclusão de novas experiências, textos e referências não é um fator limitante para o trabalho de pesquisa do aluno. Pelo contrário, o desafio da pesquisa tenderia a se tornar mais instigante. Talvez não através da busca por referências inéditas, mas através da busca de outras rotas de pesquisa que interpretem e relacionem as referências já dadas, fazendo o aluno inovar nas formas de sistematização, apresentação e compreensão dos temas.
Se confundi a construção do conteúdo pelo docente com a própria atividade de pesquisa a ser feita pelo aluno, foi de propósito e em nome daquela coerência que já mencionei. A Wikipedia é um grande exemplo do que pode conter um modelo progressista para a gestão do conhecimento escolar. Não tive a pretensão de apontar este modelo aqui, apenas indico valores que nele devem estar contidos. Penso que ferramentas e metodologias colaborativas já em uso no Brasil, podem aproveitar-se destes conceitos e estratégias para aprimorar-se.
Boa parte deste texto é resultado de um debate ocorrido na lista EAD-L. Agradeço especialmente ao Prof. Simão Pedro pelos importantes questionamentos.
Jaime Balbino Gonçalves da Silva é Learning Designer e consultor em automação, sistemas colaborativos de ensino e avaliação em EAD. Pedagogo e Técnico em Eletrônica. Trabalha na ProfSAT - TV Educativa via Satélite. Reside em Campinas, São Paulo.
jaimebalb (em) gmail (ponto) com
Professor desde 1986. Pedagogo, criou projetos de laboratórios de informática nas escolas. Coordena grupos de trabalho em educação inclusiva e uso de novas tecnologias. Faz parte de comunidades Linux voltadas a educação como Linux Educacional, Pandorga GNU/Linux dando apoio pedagógico. Palestrante e ministrante de cursos de formação em software livre educacional desde 2009. Participante e palestrante de eventos como Latinoware (foz do iguaçu), FISL (Porto Alegre), Freedom Day (novo hamburgo), Congresso Alagoano de Tecnologia de Informação - COALTI (edições em Alagoas e Pernambuco). Entusiasta de distribuições linux desde 2002.
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