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Por Jaime Balbino
Data de Publicação: 23 de Abril de 2007
A partir da década de 90, com a expansão do mercado de ensino a distância houve uma maior preocupação quanto à forma como os softwares educativos, em particular os LMSs (Sistemas para Gerenciamento do Ensino a Distância), manipulavam os conteúdos. Apesar das ferramentas existentes para o aprendizado serem condizentes com os recursos tecnológicos disponíveis, o desenvolvimento de cursos e materiais didáticos demandava custos muito altos, pelas suas próprias características de implementação, num campo metodológico ainda em fase inicial de elaboração [1].
Fazer material educativo para e-learning necessita, além de educadores, dos serviços de diversos outros profissionais para a criação de componentes multimídia, design de interfaces e programação, além da estrutura de software, hardware e suporte humano necessárias à oferta dos cursos e uma complexa compatibilidade com os equipamentos já disponíveis para acesso pelo usuário final - nem sempre condizentes com a tecnologia adotada pelo provedor. Não raro, os cursos necessitam de atualizações no curto prazo sem terem ainda gerado lucro às instituições de ensino e treinamento.
Havia, então, a necessidade de uma metodologia para o processo de criação e gerenciamento de conteúdos (framework) que propiciasse a otimização e melhor organização desses esforços, propiciando um maior controle sobre o seu ciclo de vida (lifecicle) - isto é, da sua concepção até sua utilização e posterior arquivamento, modificação ou descarte.
Uma das soluções encontrada foi a catalogação e plena identificação deste material, numa clara inspiração nas técnicas de Análise de Sistemas Orientada a Objetos, muito popular nas Ciências da Computação a partir da década de 80. Se antes um curso em e-learning era uma estrutura única e indissociável (como um conjunto de páginas HTML ou uma apresentação), a idéia agora era ter objetos de aprendizagem (learning objects) como materiais de ensino completos e independentes criados para a necessidade de algum curso ou independentemente destes e que posteriormente seriam re-aproveitados em outras situações [2]. O que temos, então, é uma mudança no paradigma de criação de cursos em e-learning, semelhante ao ocorrido décadas antes nas linguagens de programação das ciências da computação e, em parte, impulsionada pelas mesmas necessidades [3].
Apesar de ser conhecido e pesquisado mais de uma década antes, a primeira definição formal de objetos de aprendizagem data de 1998, dois anos após o início dos debates para sua padronização:
O Objeto de Aprendizagem é definido como uma entidade, digital ou não-digital, que pode ser usada, re-usada ou referenciada durante o ensino com suporte tecnológico. Exemplos de ensino com suporte tecnológico incluem sistemas de treinamento baseados no computador, ambientes de aprendizagem interativa, sistemas instrucionais auxiliados por computador, sistemas de ensino a distância e ambientes de aprendizagem colaborativa. Exemplos de Objetos de Aprendizagem incluem conteúdo multimídia, conteúdos instrucionais, objetivos de ensino, software instrucional e software em geral e pessoas, organizações ou eventos referenciados durante um ensino com suporte tecnológico.
Já clássica na literatura especializada, esta definição do consórcio IEEE é de pouco uso prático, já que é muito difícil racionalizar sobre algo tão amplo. Provavelmente o objetivo era o de apresentar o novo paradigma sem limitá-lo. Tamanha generalização permite que qualquer material seja considerado um objeto de aprendizagem, bastando para isso que o utilizemos em algum processo de ensino com suporte tecnológico. De fato, é possível utilizar esta definição mesmo em LMSs que não utilizam o conceito de objetos de aprendizagem mas trabalham com modularidade nos conteúdos, como no caso do LMS brasileiro Teleduc.
O objetivo do consórcio IEEE-LTSC era o de criar uma estrutura semântica [4] que permitisse catalogar materiais de ensino, garantindo-lhes a identificação, (re)utilização, gerenciamento, interoperabilidade, compartilhamento, integração e recuperação de maneira eficiente [5]. Tais regras de catalogação/indexação, ou metadados (metadata), resultaram na especificação internacional Learning Object Metadata, a IEEE-LOM, finalizada em 2002.
Na prática, o IEEE-LOM funciona como um cabeçalho que fornece informações sobre o objeto de aprendizagem a ele ligado (se for um componente digital) ou por ele referenciado (se for um componente não-digital, como livros, documentos, vídeos, locais, pessoas e eventos). Isto significa que ele não interfere no conteúdo ou nos objetivos do objeto de aprendizagem, nem define regras a serem seguidas em sua construção. Sua função é agrupar em um só lugar dados úteis num formato padronizado, compreensível por humanos e (alguns deles) pela máquina.
As informações contidas no metadado podem ser:
Apesar do amplo leque de informações (a grande maioria opcional), é relativamente fácil submeter materiais já existentes ao padrão, posto que não é necessário alterar sua estrutura interna. Ao tratar somente da indexação dos materiais para o ensino, não se preocupando com seus conteúdos e objetivos, o IEEE-LTSC contorna as próprias limitações técnicas impostas pela definição rascunhada em 1998. Tamanha flexibilidade permitiu seu amplo uso pelo mercado de e-learning em diversas iniciativas de padronização, como a certificação ADL/SCORM; em LMSs a ela relacionados, como o WebCT e o Blackboard; e em repositórios de objetos de aprendizagem, como o australiano CAREO e, no Brasil, a ABED e o RIVED, mantido pelo governo federal [6].
De maneira previsível, o uso dos objetos de aprendizagem se concentrou em materiais digitais e "digitalizáveis" (como vídeo e imagens), em virtude dos produtos disponíveis no mercado e pela própria prática dos profissionais em e-learning, que buscam metodologias próprias e tecnologicamente apoiadas.
Temos, então, três possíveis conceituações para os objetos de aprendizagem:
Apesar de suas muitas definições e interpretações, ainda pode-se dizer que os objetos de aprendizagem alcançaram muitos dos objetivos a que se propuseram, como o de facilitar a criação de conteúdo para e-learning armazenável, reutilizável e independente de plataforma (até certo ponto, quando se faz uso de padrões). Porém, pecam por serem pedagogicamente inconsistentes e por não possuírem uma estrutura semântica que permita aos LMSs interpretar e executar definições didático-metodológicas, como o fazem com as informações dos arquivos de mídia digitais. Estas limitações, razoavelmente contornáveis em projetos de treinamento, estudo-dirigido, auto-aprendizado, cursos de curta duração e modulares, tornam-se significativas em cursos de longa duração, na educação formal e em outros modelos que exijam um controle rígido da qualidade do ensino.
Particularmente, prefiro olhar os objetos de aprendizagem menos como uma ferramenta e mais como um conceito abstrato poderoso. Mesmo quando os criamos e os disponibilizamos em repositórios, "filiando-os" a arquivos multimídia e/ou a linguagens de programação (como o Java), tornando-os entidades reais, "quase palpáveis", passíveis de integrar-se a cursos e até participar de concursos; nós não conseguimos transferir toda a riqueza operacional da sua forma abstrata. Para mim é mais interessante reconhecer objetos de aprendizagem e estabelecer suas relações num contexto pedagógico através da análise conceitual, do que ficar limitado ao contexto da aplicação imposta pela sua "forma carnal".
Esta aí um exemplo de como a tecnologia avançada de nada serve se não está integrada a uma cultura e disciplina que a compreendam e a viabilizem. Os conceitos organizacionais que estão por traz dos objetos de aprendizagem constituem ferramentas poderosas para a organização e o planejamento do ensino. No entanto, muitos viram nisso o "Santo Graal da automação do ensino", capaz de prover por si a organização dos conteúdos e a otimização dos recursos despendidos para produzi-los. Esqueceram (ou não se atentaram) que a organização pedagógica vai além do reconhecimento e indexação de conteúdos. É necessário contextualizar pedagogicamente todo o material de ensino, além do ambiente onde se ocorrerá a aprendizagem. E num sistema complexo, como o é a educação, até as pessoas devem ter seus contextos definidos, pelo mapeamento dos papéis que desempenham no cenário pedagógico.
Mas até pouco tempo atrás a Educação carecia de instrumentos para analisar o processo de ensino-aprendizagem de forma tão profunda e nesta época os objetos de aprendizagem foram, de fato, o "estado da arte" do planejamento educacional. E hoje são a base de tudo que se construiu depois.
[1] Em "Educação a Distância: Fundamentos e Práticas", de 2002, encontramos relatos de algumas experiências pioneiras em EAD no Brasil da década de 90. Destaco o texto de Maria Cândida Moraes. Atente-se para o explícito esforço de construção de um discurso para o campo de e-learning, buscando sua legitimação através da técnica, da prática profissional e da incorporação do discurso de teorias pedagógicas reconhecidas.
[2] Acho que o termo objeto de ensino talvez expresse melhor a relação conceitual com materiais pedagógicos tradicionais, como livros, mapas, laboratórios e filmes; no entanto, o termo objeto de aprendizagem já é bastante difundido no Brasil. Em espanhol é comum encontrarmos objeto didático, uma tradução, creio eu, bem mais problemática por induzir a uma contextualização pedagógica implícita que, como veremos, é desnecessária na sua definição mais tradicional.
Note-se, porém, que os chamados cursos tradicionais (sem um forte suporte tecnológico) tendem a se apoiar em materiais didáticos também reaproveitáveis. Para alguns autores o que os diferencia dos objetos de aprendizagem é que aqueles não são digitais e/ou não possuem uma catalagação, sendo sua contextualização para o ensino dada pelo professor (Veja Sosteric & Hesemeier). Há também algumas práticas que relacionam os objetos de aprendizagem ao e-learning, excluindo outras modalidades de ensino e TICs, como TV e rádio.
[3] Sobre a relação entre objetos de aprendizagem e Orientação a Objetos, ver Stephen Downes.
[4] Por estrutura semântica entenda-se aqui um conjunto de regras criadas para gerir a organização de comandos, instruções ou notações (palavras e sentenças). Além de garantir uma coerência lógica na formatação de um modelo abstrato, ela também se relaciona com as construções lingüísticas de uma área de conhecimento (jargões, termos técnicos, conceitos, etc...), permitindo uma melhor aproximação do modelo às práticas de uso já acordadas por uma comunidade de prática.
[5] Para entender os princípios por traz da criação de um padrão, eis um exemplo de esforço independente de padronização utilizando as mesmas bases do IEEE-LOM, por "Uma proposta de padrão de metadados para objetos de aprendizagem de museus de ciências e tecnologia", de 2004.
[6] Os repositórios funcionam como bibliotecas públicas ou comerciais que concentram uma grande quantidade de objetos de aprendizagem na forma de arquivos digitais (textos, apresentações, animações), imagens, vídeos e referências a sites ou outros materiais não-digitais. Uma das idéias advindas do conceito de objeto de aprendizagem é que eles não estariam vinculados diretamente a um curso ou LMS, mas armazenados nestes repositórios para que fossem referenciados por diversos cursos através dos LMSs em que foram organizados. Wiley, por exemplo, sugere que estes repositórios dêem suporte ao desenvolvimento colaborativo de objetos de aprendizagem. Já a ADL/SCORM (2001) os situa em sua estratégia comercial destinada a alavancar o desenvolvimento de conteúdos específicos para e-learning. Apesar de conceitualmente possível, a prática demonstra que não é viável construir e disponibilizar um curso completo como um único objeto de aprendizagem.
Os textos oficiais do padrão IEEE-LTSC para objetos de aprendizagem podem ser obtidos aqui. Neste trabalho utilizamos o "Learning Object Metadata (LOM) - Draft Document, Versão 2.1", de 1998, e "Learning Object Metadata (LOM) - Versão Final", de 2002.
Nike Sosteric e Suzan Hesemeier se afastam da alta complexidade técnica inerente aos conceitos da programação orientada a objetos defendendo uma definição dos objetos de aprendizagem mais pragmática e independente das Ciências da Computação.
Outros textos de Stephen Downes: "Design, standards and reusability", de 2003, e "Editoral: The rise of learning objects", de 2004.
Para uma visão crítica (talvez não muito consistente), veja Norman Friesen e suas "Three objections to learning objects", de 2004.
Dois clássicos indispensáveis de David Wiley, incluindo sua tese de doutorado: "Learning Object and Sequencing Theory", de 2000, e "Connecting learning objects to instructional design theory: A definition, a metaphor and a taxonomy", de 2002.
José Marques Soares fez em 2001 uma bela dissertação que utiliza a orientação a objetos para desenhar um sistema de ensino completo. Interessante perceber como a pedagogia é tratada superficialmente, através de suas rotinas e não de suas teorias e práticas.
O ENSINET, também de 2001, é outro bom exemplo do uso da orientação a objetos, e mais radical: na própria sala de aula.
Vale sempre a pena ter e ler: BLOOM, B. Taxonomia dos objetos educacionais. Porto Alegre: Globo, 1972.
Jaime Balbino Gonçalves da Silva é Learning Designer e consultor em automação, sistemas colaborativos de ensino e avaliação em EAD. Pedagogo e Técnico em Eletrônica. Trabalha na ProfSAT - TV Educativa via Satélite. Reside em Campinas, São Paulo.
jaimebalb (em) gmail (ponto) com
Professor desde 1986. Pedagogo, criou projetos de laboratórios de informática nas escolas. Coordena grupos de trabalho em educação inclusiva e uso de novas tecnologias. Faz parte de comunidades Linux voltadas a educação como Linux Educacional, Pandorga GNU/Linux dando apoio pedagógico. Palestrante e ministrante de cursos de formação em software livre educacional desde 2009. Participante e palestrante de eventos como Latinoware (foz do iguaçu), FISL (Porto Alegre), Freedom Day (novo hamburgo), Congresso Alagoano de Tecnologia de Informação - COALTI (edições em Alagoas e Pernambuco). Entusiasta de distribuições linux desde 2002.
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