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Por Frederick Montero
Data de Publicação: 23 de Julho de 2007
A natureza é um desfile infindável de eventos cíclicos, como se composta de milhares de engrenagens invisíveis. A noite sucede o dia e o dia por sua vez sucede a noite. A lua completa um ciclo de fases no céu e as mesmas quatro estações se repetem ano após ano, com pequenas variações, de um ano para o outro. Mesmo o nosso corpo é regido por diversos acontecimentos que se repetem incansavelmente, em pequenos ciclos, como as batidas do coração, ou em ciclos maiores que seguem um ritmo sucessivo de necessidades, que vão da fome ao desejo de descanso, para então recomeçar de novo todos esses ciclos.
Assim ao longo de sua evolução, o ser humano aprendeu a moldar as suas atividades a esses diversos ciclos que a natureza lhe proporcionava. Para medir as distâncias, as pessoas usavam uma sucessão de passos. E para medir a largura de um móvel, utilizavam diversos ciclos de palmos esticados sobre o mesmo. Para calcular o peso de um objeto, dispunham pesos sobre uma balança sucessivamente até se conseguir o equilíbrio entre um lado e o outro da balança. Antes da invenção dos relógios mecânicos, todas as atividades humanas eram regidas pelos ponteiros invisíveis da natureza e a vida cotidiana corria conforme uma percepção subjetiva e natural do tempo. Mesmo os relógios disponíveis na antiguidade dependiam dessa circularidade imprecisa dos eventos da natureza. O tempo era marcado por longas etapas a se repetirem eternamente: manhã, tarde e noite; verão, outono, inverno e primavera; a infância, a juventude, a maturidade e a velhice. Com o girar do tempo, as coisas sempre voltavam ao seu ponto inicial. E ao fim de cada ciclo, tudo parecia permanecer da mesma forma como sempre estivera; as mesmas estações do ano, o nascimento e a morte, a colheita e a entressafra.
O tempo era medido pelos eventos e tarefas do cotidiano e cada evento possui sua medida própria, intrínseca à sua necessidade. Nada era mais absurdo do que imaginar que o tempo de se plantar, escrever um livro ou construir uma mesa pudesse ser medido por forças externas às estritamente relacionadas com a atividade a qual se pretendia medir. Montar uma cadeira levava tanto tempo quanto fosse necessário para completar a tarefa, mais a qualidade do serviço que se pretendia executar. E na ausência de outro padrão, a qualidade do produto final servia como medida para mensurar o tempo de execução de uma tarefa.
Neste contexto, o conhecimento da humanidade advinha da observação qualitativa dos fenômenos recorrentes da natureza. E os padrões de comparação, como o peso, a cor, a temperatura, a distância, o tamanho, eram entendidos a partir do modo como o ser humano percebia esses fenômenos. O corpo humano era o centro da compreensão desses eventos cíclicos que regiam o universo. E portanto as ciências então se baseavam em comparativos qualitativos, que dividiam os seus objetos de estudo em uma ou outra modalidade entre duas completamente antagônicas, como quente ou frio, longe ou perto, pesado ou leve, grande ou pequeno. Do mesmo modo como ainda vemos funcionar em terapias medicinais alternativas, como a homeopatia.
A virada de perspectiva no modo como o ser humano compreendia o universo transformou-se ao longo dos séculos, mas no século XVI, o filósofo René Descartes promoveu uma cisão na história do entendimento humano. Ao questionar passo a passo os fundamentos dos nossos conhecimentos, Descartes demonstrou que os sentidos não poderiam mais valer como os parâmetros essenciais para se compreender o mundo e obter dele qualquer informação científica. A razão antes dos sentidos deveria responder corretamente a pergunta sobre o que é conhecimento de fato, porque somente a razão poderia responder às dúvidas que venham a surgir a respeito da existência ou veracidade de qualquer idéia. Mas no século seguinte, o filósofo John Locke logrou resumir os princípios nos quais a humanidade começava a se apoiar para esboçar seus parâmetros para classificar e determinar com exatidão como os fenômenos do universo se comportam. Na sua visão, o conhecimento por meio dos sentidos somente poderia ser obtido a partir de parâmetros mensuráveis. Isto é, as ciências deveriam se basear em objetos de estudo cujas qualidades fossem reduzidas a simples valores numéricos.
Ao longo dos séculos, o entendimento humano libertou-se da cadeia dos sentidos e de suas bases qualitativas em direção ao suporte da razão e da quantificação dos fenômenos. Ao mesmo tempo em que ocorreu esta transição, a humanidade paulatinamente deslocou o centro da sua existência de um modo de vida rural para um modo de vida urbano. Neste movimento, entre todos os parâmetros que regem a vida, o tempo é aquele que sofreu a maior revolução. Pois gradativamente, o tempo abandonou a sua submissão aos diversos ciclos de fenômenos da natureza e passou a ser medido por ciclos cada vez menores de valores absolutos. Primeiro com as horas, depois com os minutos e, então por fim, com os segundos. Não sem muita resistência, o relógio mecânico substituiu o tempo marcado pelos ciclos naturais do sol e do corpo humano, chegando a causar protestos e revoltas quando instalados em torres nos centros de várias pequenas cidades rurais na Inglaterra, ao longo dos seus primeiros anos. Mas paralelamente ao longo processo de adaptação da cultura humana a valores mensuráveis, o tempo medido por ciclos absolutos acabou prevalecendo sobre o tempo natural no hábito das pessoas, seguindo uma tendência que perpassava o desenvolvimento tecnológico.
Então, ao longo da história, os papéis se inverteram, de modo que as atividades humanas passaram a ser conduzidas pelo tempo e não mais o tempo por essas atividades. Com isso, a qualidade final de um produto não mais representava o maior valor que era possível obter com um objeto. Nas grandes cidades, o artesão que executava uma obra por vez, até que o ciclo daquele serviço se completava, cedeu espaço para o operário que fabrica objetos em prazos determinados. Enquanto objeto único, o produto final de uma fábrica possui muito pouco valor. Mas ao comprimir cada vez mais o tempo para a fabricação de um objeto, as fábricas ganham em volume de produção das oficinas de artesãos.
Apesar de perdermos o devido valor dado à qualidade do que produzimos, por outro lado, a rendição do tempo à força dos relógios mecânicos permitiu o aprimoramento das relações humanas. Diante do relógio, todos os seres humanos são iguais. Pois não importa se são brancos ou negros; homens ou mulheres; jovens, adultos ou velhos; desde que eles produzam e consumam a um ritmo aceitável, todos os seres humanos são iguais. Não à toa que o século XX produziu uma mudança na percepção moral da humanidade. Porque junto com as mudanças que ocorreram ao longo da história, das sociedades centradas em um estilo de vida rural e natural para um estilo de vida urbano e mensurável, a humanidade deixou de valorizar as qualidades externas das pessoas e passou a valorizar a quantidade da sua contribuição para a sociedade, seja ela na fabricação de produtos, ou no consumo de mercadorias. Então o valor de pertencer ao gênero masculino, adulto e branco perdeu o significado, cedendo lugar a uma visão mais neutra das qualidades de uma pessoa. Cada pessoa passou a representar um indivíduo, ele próprio, perante a sociedade e não mais uma casa ou uma família, como quando o homem, adulto e branco chefiava um grupo de pessoas excluídas por suas qualidades. E diante desta individualidade de cada ser humano, cada pessoa passou a ser um único ciclo absoluto nas engrenagens da sociedade, através do voto democrático para os seus representantes ou para as decisões que envolvem a todos por igual.
Assim o tempo, que na antiguidade possuía um significado etéreo e era medido por ciclos extraídos de processos naturais, ao ser convertido em uma propriedade mensurável e material, foi acompanhado durante este decurso por uma série de mudanças que atingiram diferentes áreas da existência humana. Ainda que em muitos casos, como em relação aos direitos civis, essas mudanças tenham conduzido a avanços significativos, o tempo passou a representar um valor onipresente na nossa existência, muitas vezes subjugando qualidades primordiais que gradativamente vamos esquecendo de valorizar. O tempo aos poucos deixa para trás a sua conexão com as forças essenciais da natureza e caminha em direção a exercer domínio sobre essas mesmas forças que o sustentavam, trazendo consigo uma crescente mecanização das atividades correlacionadas. O ser humano, mesmo como pivô desta mudança, assiste passivelmente o mundo ceder sua naturalidade espontânea em troca de uma estrutura social centrada em trazer cada vez mais eficiência na utilização do seu tempo.
Frederick Montero, diretor, produtor e editor de vídeo. Formado em Filosofia pela Unicamp, é diretor do vídeo Supermegalooping, premiado no Primeiro Festival de Vídeos pela Internet. Mantém o blog sobre mídias digitais d1Tempo Digital.
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