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Por Frederick Montero
Data de Publicação: 25 de Setembro de 2007
A ciência avança um funeral após o outro - Max Planck
Os romanos antigos, da época do seu império, consideravam o discurso oral mais significativo do que a escrita, porque ele vinha carregado por parte do sopro da vida que expelimos através da nossa respiração. O ar que emanava do peito, junto com a palavra falada, tinha sua origem diretamente da alma e de perto do centro das idéias, depositado no coração. As expressões "falar de cor" ou "decorar" perderam ao longo dos tempos a sua significação primordial que era recitar de coração ou guardar junto a ele as palavras e idéias, cedendo a uma representação mecânica do pensamento. A imagem das idéias sendo trazidas pelo ar que expelimos dos pulmões, vindas diretamente do coração, formam um conjunto muito mais poético e próximo da essência da vida do que a das idéias escritas por uma mão pesada sobre o papel, provenientes de conexões sinápticas dentro do nosso cérebro. Mais até, faz as próprias idéias serem vinculadas às pessoas que as proferiram, como se ambas fossem partes de uma mesma alma, sem a divisão que o ser humano moderno faz entre razão e emoção. A vida e as idéias representavam partes indissociáveis de uma única existência.
Quando estou só, tento resgatar esse mesmo espírito jocoso que os antigos romanos tinham sobre o pensamento, e assim gosto de ouvir da minha própria boca em viva voz muitas das idéias que se fomentam dentro da minha alma. Gosto de ouvir muitas das bobagens que eu deixo armazenadas em minha alma, porque às vezes é melhor deixar essas idéias escaparem ao leu do que se alimentarem do meu espírito (no francês, espírito e mente dividem a mesma palavra: sprit) e depois fugirem para o papel onde correm o risco de se manterem indeléveis. Quando me ouço, sempre posso refletir sobre cada um dos pensamentos que fervilham dentro de mim. Mas quando coloco no papel essas mesmas idéias, a responsabilidade de me justificar perante a sociedade e perante mim mesmo a respeito da coerência dos meus pensamentos não permite que eu me corrija de alguma das idiotices das quais o meu caráter é moldado. O meu orgulho me impede com mais vigor que eu me corrija das palavras que eu escrevi do que das palavras que eu proferi. Então recitar algumas dessas idéias é uma forma banal de evitar que elas escorreguem para o papel e uma vez estando lá, eu seja obrigado a protegê-las com todas as minhas forças, por mais injustificáveis que elas sejam.
Mas assim como o meu espírito não é feito apenas de idéias razoáveis, o mundo também não o é. Por uma lado há as forças que dizem não estarmos preparados para as mudanças e muito menos as desejamos. Porém do outro lado, há as forças que por amor a uma causa ou por puro princípio introduzem conceitos novos que se chocam com os modelos estabelecidos. Além destes, existem os que por necessidade ou vontade própria alteram os meios em seu entorno, criando e descobrindo novas maneiras de se relacionar com o ambiente e as pessoas que lhe cercam. O choque entre todos estes movimentos, movimenta a roda da evolução humana, avançando ou retardando a humanidade dentro de parâmetros que não tendam em demasia para um lado ou para o outro. Quaisquer idéias, princípios ou opiniões apenas se consolidam, a partir deste conflito entre os ventos das mudanças e as forças da tradição, se as antigas e preconceituosas idéias morrem junto com seus defensores.
Entre os grandes filósofos, David Hume, duvidava da intocável santidade da razão, porque todas as nossas conclusões a respeito do mundo (a não ser as da matemática e da lógica), mesmo as oriundas da Física, eram carregadas por alguma carga emocional ou instintiva, que nos faz acreditar que o universo é e sempre foi daquele modo como a razão nos leva a concluir. Mas muitas vezes defendemos o que consideramos correto não porque realmente sentimos que é o que deveria ser, mas porque acreditamos que deveríamos sentir deste modo. E nesses casos somos surpreendidos pelos nossos atos que fogem a compreensão de nossa razão e, no final da linha que não gostaríamos de ter cruzado, nos viramos para trás e nos perguntamos como fui capaz de fazer isso, ainda que tenha ido contra todas as minhas crenças.
A resposta não está em nós mesmos, mas no que deixamos de herança para as próximas gerações. O que houver de instintivo em nós que racionalmente desaprovamos irá ao túmulo conosco, se demonstrarmos aos nossos descendentes que reprovamos esses aspectos, no esforço de tentar cumpri-las. Porém as idéias que acreditamos serem as corretas, mesmo que para nós sejam difíceis de cumprir, para as gerações subseqüentes serão tão naturais quanto desejamos que fossem conosco. O que defendemos veementemente com a razão, mas nos custa a manter por questões de hábito ou criação, nossos filhos crescerão acreditando ser tão natural quanto respirar.
Frederick Montero, diretor, produtor e editor de vídeo. Formado em Filosofia pela Unicamp, é diretor do vídeo Supermegalooping, premiado no Primeiro Festival de Vídeos pela Internet. Mantém o blog sobre mídias digitais d1Tempo Digital.
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