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Por Frederick Montero
Data de Publicação: 24 de Março de 2008
A existência humana é rica em uma grande variedade de características que juntas constroem a complexa estrutura da consciência individual. Não há como negarmos, ainda que nos esforcemos muito para isso, a nossa origem animal e todas as nossas características oriundas desta origem, como o instinto, responsável por nossas ações diretas aos estímulos exteriores à nossa existência. Na outra ponta da balança, temos a razão, que se descola e afasta desses estímulos exteriores, para tentar compreendê-los além do mero ponto de contato imediato que mantemos com os fenômenos da realidade. Porém além desses dois aspectos primordiais da existência humana, poderíamos enumerar a fé como mais um deles.
As religiões tomaram para si a palavra, mas a fé não se trata apenas de um sentimento religioso. Alcança uma dimensão muito maior se pensarmos que é parte fundamental da condição humana, como um contraponto à razão, alternativo ao instinto. A razão, por mais que desejemos acreditar ser a grande salvadora da humanidade, é uma peculiaridade imobilizadora se deixada sozinha. Enquanto o instinto é a reação cega aos estímulos sensíveis do mundo, a razão, em sua forma mais pura, é a contemplação profunda desses fenômenos, enquanto uma busca da última e definitiva compreensão onipresente do universo a partir de um único fenômeno.
Porém o grande dilema acontece no fato de que a razão é sustentada pela linguagem e a linguagem é apenas um recorte da realidade, no qual cada idéia é a porta de acesso para o resto das coisas que compõem o universo e subseqüentemente para outras portas, infinitamente. Definir em uma idéia um aspecto da realidade é o mesmo que tentar capturar toda a água dos oceanos em um copo d'água; por mais que nos esforcemos o significado último de uma coisa transborda pelas laterais do significante que tentamos lhe impingir. Sozinha, a razão se perde no seu trabalho sem fim de atravessar portas atrás de portas, na vã tentativa de alcançar um significado que complete a sua tarefa de perceber a realidade em sua totalidade, porque o longo caminho da compreensão de um único fenômeno conduz invariavelmente a contemplação final de toda a realidade. Ao final, a razão busca ser ela mesma a própria realidade em si, já que perceber de fora a realidade por completo é criar duas realidades, uma paralela a outra, o que para a própria razão é inadmissível. Neste caso, cria-se um dilema insolúvel, pois não há como afirmar sobre determinada coisa, sem criar uma realidade paralela, distorcida e limitada em seu alcance, ou sem apresentar a coisa em si, o que não diz nada além da coisa em si mesma.
O instinto por sua vez comunica-se com a realidade diretamente. Aliás, o instinto se faz parte da realidade enquanto uma extensão primordial dos fenômenos que nela ocorrem, como um fenômeno do fenômeno. Enquanto a razão é a contemplação sem ação dos fios que ligam os fenômenos, o instinto é a pura ação sem visão detalhada dos fenômenos. O instinto comunica-se com a realidade como um todo, na medida em que a razão particulariza os fenômenos ao máximo.
A fé é a crença em algo quando tudo indica que não há razão completa que justifique o objeto de nossa crença. É a fé que interrompe a razão em sua jornada sem fim, ao nos levar a agir, do mesmo modo como o instinto nos lança à ação. Mas no caso da fé, a razão é induzida a crer que há um fim na sua busca infindável pela compreensão definitiva. A fé engana a razão e a força a agir em função dos elementos que dispõe até o momento. Ou seja, a fé interrompe a busca infindável e infrutífera da razão por um conhecimento pleno, de modo que a razão é conduzida a agir instintivamente a partir do conhecimento acumulado até determinado ponto. Se razão e instinto são dois opostos em uma longa régua de refinados graus de ação e contemplação, a fé torce essa régua atraindo a razão e o instinto lado a lado, jogando a mente diretamente da contemplação à ação. Em um equilíbrio imperfeito, no qual há momentos em que um prevalece sobre o outro, a razão e o instinto tem a fé como a ponta de encontro entre a areia e o mar, definindo a altura da maré ou a largura da praia.
A execução de uma tarefa ou a elaboração de um projeto não dependem apenas de um único aspecto da existência humana, mas de uma conjunção de fatores que levam da assimilação de determinados fenômenos pelo instinto até a elaboração de um mapeamento desses fenômenos pela razão. Mas apenas a fé ou a crença nos resultados obtido até um ponto específico obtido pela razão é que permite pular da inercia à ação. Ou seja, a razão sozinha não trabalha em um processo criador amplo, se em um determinado momento a consciência não assume a crença irrestrita nas informações parciais que gerou ou obteve até o instante. A fé cega na razão impulsiona o ser humano no instinto de criação e construção dos elementos gerais das sociedades.
Frederick Montero, diretor, produtor e editor de vídeo. Formado em Filosofia pela Unicamp, é diretor do vídeo Supermegalooping, premiado no Primeiro Festival de Vídeos pela Internet. Mantém o blog sobre mídias digitais d1Tempo Digital.
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