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Por Fátima Conti
Data de Publicação: 07 de Outubro de 2008
Há algum tempo um conjunto de organizações que representam os interesses da indústria do disco, cinema e software tem tentado fazer com que alguns dos mais poderosos países do mundo adiram à idéia de um novo acordo comercial, inclusive modificando leis nacionais sobre direitos de cópia e distribuição de produtos culturais, como Cds de música, livros e programas computacionais, com o objetivo de "criminalizar a facilitação com fins não comerciais de trocas de informação não autorizadas na Internet."
Várias pessoas, (incluindo, médicos, professores, advogados e defensores dos direitos humanos) e representantes de mais de 100 organizações (1) se uniram e fizeram um pedido público contra o segredo que tem sido uma constante nas negociações sobre o ACTA e solicitaram a publicação imediata dos documentos de pré-projeto em discussão e a agenda para a negociação e a lista dos participantes nas negociações do texto do acordo.
O Anti-Counterfeiting Trade Agreement - ACTA é um tratado "anti-pirataria" que está em fase de negociação por alguns membros, como Estados Unidos, União Européia, Suíça, Japão, Coréia do Sul, Canadá, México, Austrália e Nova Zelândia, pelo menos desde outubro de 2007. Depois, Austrália, República da Coréia, Nova Zelândia, México, Jordânia, Marrocos, Cingapura, Emirados Árabes Unidos e Canadá se juntaram às negociações. (Há mais detalhes aqui ou aqui).
O objetivo declarado é aumentar os direitos dos detentores de propriedade intelectual, acima da corrente de normas internacionalmente acordadas, por meio de uma maior cooperação e coordenação entre as agências governamentais internacionais. Para conseguir isso deve interferir nas liberdades civis e no livre fluxo de informações na Internet, e, no caso dos países em desenvolvimento na "capacidade de escolher opções políticas que melhor atendam às suas prioridades internas e ao nível de desenvolvimento econômico".
O ACTA ainda não está em vigor, e muitas das discussões que o envolvem sequer são confirmadas por todos os participantes. Curiosamente, embora a proposta do tratado possa sugerir que o acordo incide apenas sobre mercadorias falsificadas físicas (como medicamentos), muito pouca informação foi disponibilizada publicamente pelos governos sobre o conteúdo do tratado. Mas já há certeza que ele terá um grande papel na questão das cópias de produtos culturais, como discos e filmes.
É fato que grandes grupos donos de direitos autorais sempre procuraram obter mais poder, visando preservar os seus modelos de negócios, provocando, entre outras medidas, um grande aumento no prazo de concessão desses direitos e tentando impedir o uso da cópia doméstica. (Há mais detalhes aqui ou aqui).
Estranhamente, tanto a sociedade civil dos países participantes como os países em desenvolvimento vêm sendo excluídos das negociações. Tem sido deixadas de lado várias entidades civis internacionais como a Organização Mundial do Comércio, a Organização Mundial de Propriedade Intelectual e do grupo sobre Propriedade Intelectual da Coligação Econômica da Ásia-Pacífico.
Ou seja, nenhum fórum internacional foi consultado. Opiniões não foram ouvidas. Estudos não foram feitos. Assim, nenhum freio ou contrapeso civil está influenciando o resultado das negociações para o ACTA.
Entretanto, desde 1994, quando ocorreu a conclusão do acordo OMC sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual, (WTO Agreement on Trade-Related Issues of Intellectual Property - TRIPS), muitos dos novos acordos de propriedade intelectual foram criados fora de espaços multilaterais, apenas por meio de acordos bilaterais e regionais de comércio celebrados pelos Estados Unidos ou pela Comunidade Européia, com seus respectivos parceiros comerciais.
Portanto, aparentemente, embora alijados da discussão sobre o ACTA, os países em desenvolvimento serão obrigados a aceitar o que quer que tenha sido decidido, pois isso fará parte de qualquer acordo de comércio livre.
Apesar do impacto significativo e potencialmente prejudicial sobre os consumidores e a sobre a inovação tecnológica, e apesar da pressa com que o tratado está sendo negociado, quase não há informação sobre o seu real conteúdo, e houve poucas oportunidades da sociedade civil expressar as suas opiniões sobre ele. Houve pouca transparência durante todas as negociações.
O que sabemos do ACTA deriva de um pequeno relatório de outubro de 2007 do USTR ("United States Trade Representative"), uma agência de comércio dos Estado Unidos, uma breve notícia suplementar também do USTR e um documento recentemente divulgado ao público, uma reflexão sobre um possível acordo comercial anti-pirataria, a partir de uma fonte desconhecida. Esses documentos falam sobre novos regimes jurídicos, remoção de material ilícito, medidas penais, e aumento da fronteira de busca. E deixa em aberto o modo como os provedores de Internet devem ser incentivados a identificar e remover o material supostamente infrator.
Agrava o problema saber que lobistas das grandes empresas de música, filmes, software, jogos de vídeo, bens de luxo e farmácia tiveram acesso a documentos preparatórios do ACTA e puderam influenciar as negociações.
Entretanto, é muito estranho que o ACTA está sendo concebido como um "acordo executivo", e não como um "tratado". Note-se que acordos executivos não requerem aprovação congressual. E, como resultado, não há como responsabilizar os signatários perante o público, especialmente em um ano eleitoral. Aparentemente a forma de conduzir o acordo levará juízes dos E.U.A. a considerar que existem acordos comerciais que seu país assinou e que não podem ser descumpridos. E tornarão essas políticas uma realidade.
Há muita especulação sobre o que alguns termos significam no tratado, pois palavras como "falso", "pirataria" e "uso particular e uso comercial" tem significados diferentes de acordo com o contexto e/ou com a legislação do país envolvido.
Curioso é notar que, no caso do Brasil, modificações na legislação brasileira começam a ser colocadas. Entretanto, o projeto relatado pelo senador Eduardo Azeredo (PSDB/MG), com emendas do senador Aloízio Mercadante (PT/SP), além de atender aos desejos do G8 e dos distribuidores de cópias de produtos culturais, parece ter atendido, principalmente, os interesses do Fisco e do setor bancário (Há mais detalhes aqui ou aqui).
Aparentemente, há três aspectos importantes no acordo: a cooperação Internacional, as práticas de execução, e o quadro jurídico.
A parte sobre aplicação prática é nebulosa e praticamente não há informação como o tratado seria aplicado, embora declare abertamente a sua crença na "forte proteção da propriedade intelectual".
Será que quaisquer dispositivos eletrônicos de armazenamento de dados como iPods, laptops, netbooks, pendrives, telefones celulares, além de CDs e , DVDs poderão ser confiscados e/ou destruídos por guardas de alfândegas na passagem por fronteiras internacionais, sem que tenham sequer de obter uma queixa de um detentor de direitos autorais?
A exigência que provedores de Internet exerçam vigilância cerrada sobre seus consumidores é preocupante, pois de que forma pode-se fazer isso sem ameaçar as liberdades individuais e a privacidade? Evidentemente, as medidas penais,e aumento da fronteira de busca, suscitam grande preocupação para os cidadãos e para as liberdades civis.
A questão jurídica parece ser a mais complicada, pois os compartilhadores podem passar a ser alvo de sanções penais e não civis. E é preciso lembrar que países diferentes tem diversos sistemas legais, com implicações também diferentes na vida de seus cidadãos. Entretanto, há outras conseqüências possíveis: em certas leituras admite-se até a limitação da comercialização dos medicamentos genéricos nos países em desenvolvimento.
Na prática, parece que alguns dos objetivos são
Nos E.U.A. a defesa das liberdades civis, a privacidade, a livre expressão, e os direitos dos consumidores no mundo digital, diz respeito à Primeira Emenda da Constituição. Essa emenda constitucional impede o Congresso de estabelecer ou dar preferência a uma religião ou proibir o livre exercício de qualquer religião. Também proíbe o Congresso de limitar a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa. E garante o direito de livre associação pacífica pelos cidadãos, inclusive de fazer petições ao governo com o intuito de reparar agravos.
E também existe o "Freedom of Information Act", FOIA, uma lei que exige que as agências do governo federal dos EUA divulguem a grande maioria dos documentos administrativos sempre que um cidadão dos E.U.A. Solicitar.
Os esforços para obter informações foram vãos, portanto as entidades pretendem agora levar o governo federal dos EUA ao tribunal.
Aparentemente, os representantes dos países participantes do ACTA pretendem finalizar suas linhas fundamentais ainda nesse ano. Assim, cabe perguntar: esse trâmite jurídico será resolvido rapidamente?
Se vai existir um acordo internacional sobre assuntos essenciais para a troca de informações e de conhecimento, esse tratado não pode ser feito em segredo.
Portanto, a falta de transparência nas negociações de um acordo que possa afetar os direitos fundamentais dos cidadãos do mundo, é fundamentalmente antidemocrática. E a revisão dos textos pela sociedade civil só pode ajudar a evitar problemas imprevistos na aplicação do acordo. Assim, é evidente que torna-se necessário um debate público para esclarecer esses conceitos e preocupações.
Evidentemente, a rapidez com que as negociações vem sendo feitas torna imperativo que esses documentos sejam disponibilizados imediatamente aos cidadãos.
Estas organizações incluem universidades e institutos de pesquisa de muitos países, agências de vários países em desenvolvimento em luta contra doenças como a AIDS e o Câncer, entidades representativas de estudantes e profissionais de Saúde, Farmácia e Medicina, como a Médicos Sem Fronteiras, associações de proteção aos direitos humanos, grupos de trabalho sobre imprensa, informação tecnológica e bibliotecas, outros grupos sobre leis de patentes e organizações não-governamentais, sem fins lucrativos, como a EFF e a Public Knowledge que defendem direitos dos consumidores, tendo em vista as rápidas mudanças que a tecnologia e a era digital trouxeram.
Fátima Conti
22/10/2008
fconti@uol.com.br
Fátima Conti lida com software há algum tempo. Especialmente usando computadores velhinhos. Gosta da filosofia do movimento do Software Livre. Aos poucos tem implementado o uso de programas grátis e/ou livres por pensar que seu bom uso na educação, em geral com problemas de carência de recursos, é absolutamente necessário para garantir o início e a continuidade da aprendizagem, qualquer que seja o tema de interesse pessoal e/ou institucional.
Eu não acredito em extraterrestres. Eles são muito mentirosos.