Rosa, a cabloca.
Por Jefferson Wanderley dos Santos
Data de Publicação: 22 de Fevereiro de 2015
Certo dia adentrei em uma loja de departamentos de uma grande cadeia
varejista. O aroma agradável inebriou meu olfato. O cenário, composto de
estantes e cabides rigorosamente dispostos segundo a competente orientação
de algum "designer", trazia-me uma mistura de prazer e de poder. Poder de
gastar mediante as generosas e atrativas ofertas.
O sistema de som, cadenciando uma voz macia e melodiosa e, ao mesmo tempo,
automatizada pela repetição "decoreba", penetrava em meus ouvidos de forma
imperceptível, em meio àquele fascinante cenário enquanto, paradoxalmente,
mostrava-me uma parcela da "politicamente-correta" gestão estratégica de
Recursos Humanos: -"Colaboradora Grace, comparecer ao atendimento ao cliente!".
A frase era simples, objetiva e também comum em outras lojas do mesmo
perfil. Todavia, algo de errado ela mostrava em meio àquela fulgurante imagem
e ambiente como um todo. Tive a forte impressão que ali, naquele contexto,
a palavra "colaboradora" era inadequada.
Uma breve sequência de perguntas a funcionários diferentes mostrou-me que
para o "colaborador" aquela organização não estava, pelo menos para os que
perguntei, atendendo aos seus anseios.
Entendo tal termo como alguém que labora (trabalha) junto, todavia, sem a
posição igual ao que dirige e orienta. O termo traz o significado de alguém
que participa da construção de algo tendo, ou não, a responsabilidade com
o produto final. Olhando por outra perspectiva, o termo "empregado" não tem
nada de pejorativo.
Sequer, o termo funcionário é "desqualificante" pois a pessoa está sendo
utilizada em uma função, numa razão de estar em um meio produtivo. Enfim,
há uma propriedade e pertinência do "empregado", ou "funcionário", em um
contexto mais amplo. Sem a pessoa nele "empregada", exercendo com suas
habilidades uma função (funcionário) o objetivo não é atingido.
Acredito ter havido uma conjunção inoportuna de eventos em um mesmo período
de nossa história econômica. O "boom" de especialistas em qualidade total,
no trabalho e qualidade de vida no trabalho, aliado à nossa indefectível
visão sócio-religiosa do labor como atividade em si mesmo contribuíram,
sobremaneira, para o desgaste da palavra como ferramenta de qualificação
profissional. Assim, o trabalho sendo destino (ou melhor, sina) dos menos
qualificados, dos não pertencentes às cortes ou castas. O trabalho visto
com castigo, peso, ultraje à dignidade humana.
Dignificar uma pessoa pelo trabalho, por seu valor, pela expertise e excelência
que ela aplica em uma determinada tarefa, ou função, é essencial nas relações
humanas. Assim, colaborador, empregado e funcionário, são termos que guardam
similaridades, estando todos em um mesmo plano como coadjuvantes dentro de
um significado organizacional mais amplo.
Visto o contexto por outro significado: os empresários ou empregadores aplicam
(empregam) a competência e a expertise de um profissional para atingir um
determinado objetivo organizacional.
Enfim, o que há de errado nisto? Por que é menos dignificante chamar um
profissional de "empregado"? Costumava dizer aos meus subordinados (e este
outro termo que não considero pejorativo, nem quando os meus chefes assim
me qualificam) que o respeito é uma dimensão extrínseca em sua dinâmica. É
verdade que adaptei o conceito de "extrínseco" em si, mas era importante
para a mensagem.
Explicando melhor a idéia: A pessoa projeta no outro, através de suas atitudes
posturais (e também intelectuais) o respeito que lhe é devido. Ela influencia,
no outro, a percepção da reverência silente, do respeito, da aceitação,
da pertinência que lhe são devidos. Ela, com sua dedicação, aplicação,
seriedade e perseguindo a qualidade em tudo o que faz, projeta no outro, o
respeito que lhe é devido, como pessoa e profissional competente e respeitável.
Como exemplo do que disse, cito uma ex-empregada doméstica, Rosa, que
contratei, por telefone, antes de me mudar para uma outra capital. Após
uma densa negociação ela manteve-se firme em sua qualificação salarial e
garantiu-me que o montante que ela pedia valeria pelo seu trabalho. Ela
pedia o dobro do que o mercado local oferecia. Após o terceiro mês, não só
constatando ser justo, passei a lhe conceder bônus de produtividade. Em
sua simplicidade e competência ela se impôs e eu me curvei frente à sua
excelência. Seria tão demeritório chamá-la de empregada?
Rosa, por sua vez, tinha orgulho de sua carteira profissional. Ela sabia do
porquê de lhe chamar de empregada, pois ela detinha (só dela) aquele emprego,
aquela ocupação profissional especializada e passou a ser insubstituível
para nossa família. Cabocla de tez morena clara, Rosa impunha seu ritmo a
nós e dominava todo cenário doméstico a sua volta. Apesar de analfabeta, até
sobrecarga nas tomadas ela comentava e precavia-se distribuindo os aparelhos
ao longo das poucas tomadas e receptores elétricos. Erro, mais adiante,
por mim corrigido dado a sua preocupação em ter um local e ferramentas de
trabalho prontas e dignas de receber seu toque, sua expertise. Seu "campo" de
pesquisa e atuação ela dominava com maestria metodológica e científica. Cada
coisa no seu lugar, cada tarefa e obedecendo uma taxonomia. Pragmatismo e
conhecimento exalavam-se de seus simples e eficientes atos. E ela, analfabeta,
nem se apercebia de seu "doutorado" doméstico.
Ao longo de minha carreia deparei-me com excelentes profissionais que me
impuseram o respeito ao seu trabalho, antes e após este "boom" de termos
de consultorias. No momento em que se desligavam da organização eu fazia
questão de numerar referências em indicações, em cartas e ao telefone, para
outras empresas. Desconhecia quem assim fazia no segmento que eu atuava. Um
merecido tributo. Era obrigatório sob o ponto de vista moral.
Por que manter esta figuração do empregado explorado e "subvalorizado"? O que,
de fato, a troca de termos mudaria nesta perspectiva social? O empregado
aumentaria sua produtividade se chamado de colaborador? Faria ele corpo
mole ou processaria por danos morais quem viesse a lhe chamar de funcionário
ou empregado?
Quais são os espaços físicos e conceituais que as organizações dão aos
seus colaboradores? Qual é a dimensão dos alojamentos? Como é o conforto os
refeitórios? O "lay out" e a ambiência física lhes são propícias a aplicar
toda a sua energia e expertise no trabalho?
E você, colaborador que está lendo este artigo, tem suas opiniões consideradas
e aplicadas em um processo decisório da organização que trabalha? Em caso
afirmativo, qual seria o problema de chamá-lo de empregado? Em que você se
sentiria diminuído?
Acredito, por fim, que os neologismos não modificam culturas por si sós. As
iniciativas e atitudes patronais que vêm agregadas ao termo é que são mais
importantes. Valorizar a pessoa pelo que ela produz, não só nos salários e
benefícios, mas também nas ações simples e subliminares exercem um efeito
mais positivo.
Reverência oportuna à pessoa e suas competências valem muito mais do que
um neologismo bacana e politicamente correto. O respeito nas atitudes vale
muito mais do que bonitas palavras.