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Autor: Rafael Evangelista, Planeta PortoAlegre
Data de Publicação: 29 de Novembro de 2004
Por trás de uma aparente distinção técnica, os termos software livre e código aberto, criados por Richard Stallman e Eric Raymond, escondem diferenças políticas e ideológicas
Não foi à toa que George Orwell, ao imaginar um futuro tenebroso em 1984, descreveu como um dos pilares de seu Estado autoritário uma polícia da informação, responsável pela fiscalização e pelo emprego da novilíngua. As palavras não são figuras inertes, que servem só para descrever coisas. No sentido, inscrevem-se também história e ideologias.
Também não é à toa que, no mundo do software livre, exista uma constante disputa sobre os nomes e as palavras utilizadas. Essa discussão, às vezes, torna tudo muito mais confuso para quem não participa do debate, mas é um sinal de que a comunidade, mesmo quando só quer se preocupar em fazer software, se ocupa também de questões políticas, de poder. Dizer é se colocar no mundo, é assumir posição. Afinal, há alguma diferença entre falar Linux ou GNU/Linux? Ou entre se dizer um adepto do movimento pelo software livre ou do movimento de código aberto? Há sim, e muita.
Para além das respostas simplistas e pragmáticas, a solução pode ser encontrada na história do movimento. Ninguém nega que tudo saiu das mãos e da cabeça do guru Richard Stallman que, ainda na década de 1980, delineou os princípios éticos do movimento. Na época, Stallman, fundador da Free Software Foundation (FSF, Fundação do Software Livre, em inglês), estabeleceu as quatro liberdades que fundamentam o movimento: o software deve ser livre para ser modificado, executado, copiado e distribuído. Ambos, o código aberto e o software livre, respeitam esses parâmetros.
Sem dúvida, Stallman continua sendo o grande filósofo do movimento. No entanto, a partir de 1991, ele se vê obrigado a dividir o palco com uma jovem estrela da Finlândia, Linus Torvalds. Carismático, empreendedor e sabendo usar melhor a internet, ele conseguiu dar solução a um problema que a FSF se dedicava há anos, construir um kemel que suportasse um sistema operacional alternativo. O kernel é uma parte central do sistema, responsável pela configuração e gerenciamento dos dispositívos (teclado, mouse, monitor etc). A FSF já tinha todo o resto da estrutura do sistema pronta e trabalhava no desenvolvimento de seu kernel. Linus foi mais rápido e, mantendo a filosofia livre, adotou soluções tecnicamente mais eficientes, criando o Linux, essa parte essencial do sistema.
O método de desenvolvimento adotado por Linus está em A Catedral e o Bazar, livro escrito por Eric Raymond, em 1997. A obra é também uma alfinetada em Stallman, acusado de adotar uma postura centralizadora de desenvolvimento. Raymond descreve o desenvolvimento GNU como se fossem catedrais, monumentos sólidos, construídos a partir de um grande planejamento central. Já o desenvolvimento adotado por Linus seria como um bazar, com uma dinâmica altamente descentralizada. Diz Raymond: "Penso que a criação mais esperta e de maiores consequencias não foi a construção do kernel em si, mas a invenção do modo de desenvolvimento Linux".
Mas há mais na fala de Raymond com relação ao modelo Linux do que o elogio da técnica - embora o sucesso desta seja inegável. Stallman sempre foi uma figura politicamente muito atuante, não apenas no campo da informática. Mais velho, tendo vivido toda a experiência da luta pelos direitos civis nos EUA, Stallman carrega em seu discurso uma ótica pouco amigável às empresas. Em seu site pessoal, por exemplo, ao lado de artigos em favor do software livre, encontram-se também ensaios políticos sobre temas como a invasão estadunidense ao Iraque e o muro de Israel na Palestina. Raymond, por sua vez, é um ardoroso defensor da liberalização do uso de armas, tema usualmente mais ligado às bandeiras da direita.
Linus, por sua vez, além de ser politicamente mais moderado e pragmático, consegue criar uma identidade maior com a nova geração de programadores abaixo dos 40 anos, da qual Raymond faz parte. Essa geração, segundo Sam Willians, autor do livro Free as in Freedom, é mais energética e ambiciosa.
Desde a ascensão do trabalho de Linus, boa parte do tempo de Stallman tem sido gasta em pedidos para que todos refiram-se ao conjunto do software como GNU/Linux e não apenas Linux. Quer somente que seu trabalho, e de toda FSF, seja reconhecido.
Se o discurso politizado e a integridade radical de Stallman nunca foram de fácil digestão para os programadores da nova geração, ambos são ainda mais indigestos para os empresários. Raymond teve um papel decisivo na criação da alternativa mais ao gosto do paladar corporativo.
Em A Catedral e o Bazar, ele descreveu um processo de produção inovador e descentralizado, em que as alterações no software são rapidamente entregues à comunidade. Esta, testando e avaliando o produto, estabelecem uma espécie de seleção natural em que as melhorias sobrevivem e as soluções falhas são logo identificadas. A descrição encantou os executivos da Netscape, dona de navegador de internet que havia sido destruído pela ofensiva agressiva - e anti-competitiva, segundo os próprios tribunais dos EUA - da Microsoft e seu Internet Explorer. Em 1998, Raymond foi a peça chave no processo de convencimento dos executivos da Netscape para que liberassem o código.
O prestígio adquirido por Raymond, somado ao do carismático Linus, foram essenciais para que o movimento de código aberto (open source, em inglês) pudesse se estabelecer. Frequentemente, Stallman procurava - e procura até hoje - deixar claro que o free de free software (do termo original em inglês), não significa grátis mas livre. A confusão entre livre e grátis tornou-se a justificativa perfeita para que surgisse o termo código aberto, neutralizando a reivindicação política do movimento.
Não há diferenças substanciais entre o que os termos software livre e código aberto pretendem definir. Ambos estabelecem praticamente os mesmos parâmetros que uma licença de software deve conter para ser considerada livre ou aberta. Ambas estabelecem, na prática, que o software deve respeitar aquelas quatro liberdades básicas que a FSF estabeleceu. Mas os defensores do termo código aberto afirmam que o termo fez com que os empresários percebessem que o software livre também pode ser comercializado. Teriam sido mudanças pragmáticas e não ideológicas.
O próprio Richard Stallman diz não ver o grupo do código aberto como inimigo. "Nós discordamos dos princípio básicos, mas meio que concordamos com as recomendações práticas. Então podemos trabalhar juntos em muitos projetos", diz.
O fato é que a Iniciativa do Código Aberto (Open Source Iniciative, em inglês), entidade cuja criação foi proposta por Eric Raymond, significou uma polarização de poder com a FSF de Stallman. Como ambas as entidades e o movimento como um todo só cresceram nos últimos anos, isso não significou um enfraquecimento para Stallman.
Em seu livro de ensaios, Free Software, Free Society, Stallman argumenta com razão que o termo código aberto na verdade confundiu mais do que esclareceu. "O sentido óbvio para a expressão código aberto é: 'você pode olhar o código'. Essa expressão é tão ambígua quanto o termo free software (software livre) em inglês", escreve. De fato, não basta que um usuário possa ler o código de um programa para que ele seja livre. A liberdade para olhar o código é apenas uma das quatro liberdades fundamentais.
Stallman continua, colocando o dedo na ferida e apontando a despolitização do termo. "O principal argumento para o termo código aberto é que software livre deixa as pessoas inquietas. É verdade: ele fala de liberdade, sobre ética, sobre responsabilidade tanto quanto sobre conveniências. Ele convida as pessoas a pensar sobre coisas que elas poderiam ignorar. Isso desperta desconforto e algumas pessoas podem rejeitar a idéia por isso. Mas isso não significa que a sociedade vai ficar melhor se pararmos de falar nesses assuntos".
Há exemplos de como o termo código aberto tem sido usado de maneira traiçoeira. Em resposta às crescentes acusações de que os clientes de seus produtos não tem acesso ao código fonte (as linhas de instruções que formam um software), a Microsoft tem respondido com o seu programa Shared Source (algo como código compartilhado). Por esse programa, a empresa mostra partes do código de seus produtos a clientes como universidades e governos. Na prática, ela torna parte de seu código aberto, o que não significa que ela se torne adepta dos softwares livres. Para isso, o código deveria ser aberto a todos - e não só à vistoria de seus clientes - e deveria ter sua execução, distribuição e modificação permitidas livremente.
Entre a comunidade de software, ciente de que código aberto e software livre significam praticamente as mesmas recomendações, dizer um ou outro na verdade significa tomar partido de um determinado grupo e de uma certa inclinação política. Para quem acha que, além da eficiência e da estabilidade de certos programas, é preciso construir alternativas mais justas de distribuição da produção e do conhecimento, o termo software livre parece ser a melhor opção.
Rafael Evangelista é cientista social e linguista. Sua dissertação de mestrado tem o título Política e linguagem nos debates sobre o software livre. É editor-chefe da revista ComCiência e faz parte de algumas iniciativas em defesa do software livre como Rede Livre, Hipatia e CoberturaWiki.
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