você está aqui: Home → Colunistas → Zona de Combate
Por Rafael Evangelista
Data de Publicação: 21 de Novembro de 2006
Evolução econômica e tecnológica estão criando condições para que ambiente inovador e livre da Internet sejam coisa do passado. Um pequeno exercício de futurologia pessimista informada.
Tudo bem, a pergunta do título é um pouco catastrófica. Mas um olhar atento para certas tendências mostra que a hipótese não é absurda, pelo contrário, traduz um cenário factível e que deixaria bastante felizes algumas poucas, mas poderosas, empresas.
Algumas características fizeram com que os computadores e a Internet se tornassem o sucesso que são hoje.
Primeiro, o hardware com padrão aberto: que proporcionou o barateamento das máquinas (vários fabricantes concorrendo para produzir peças mais ou menos padronizadas). Em sua tese de doutorado, Sergio Amadeu explica muito bem esse fenômeno mostrando como, ao mesmo tempo, o modelo aberto do hardware permitiu o crescimento do modelo fechado de software (está no capítulo dois, confira em http://twiki.softwarelivre.org/bin/view/TeseSA/TeseCapituloII).
Em segundo, a neutralidade da rede, ou seja o fato de que, na Internet, o trânsito de nenhum dado é privilegiado. A velocidade de transmissão depende da capacidade do receptor e do emissor e não de quem controla os cabos e o roteamento. Um site pequeno, com audiência selecionada, é capaz de transmitir vídeos, por exemplo, com uma velocidade tão boa quanto um grande portal. Tudo resume-se a uma relação entre a capacidade do emissor e o número de receptores.
E, por último, o fato de que a maioria dos aplicativos roda no computador do usuário. Diversas empresas já tentaram, sem sucesso, criar um modelo de serviços em que o processamento não fica no computador doméstico, mas em um servidor central. Porém, como até pouco tempo atrás a banda larga ainda engatinhava, isso nunca funcionou. Era mais fácil licenciar ao usuário uma cópia de um software processador de textos, por exemplo, do que criar uma estrutura de rede em que o código, mesmo o executável, ficasse nas mãos do detentor dos direitos autorais. Para que as aplicações funcionassem a contento era preciso que os programas ficassem instalados no computador do consumidor final, mesmo correndo-se o risco de ele fazer uma cópia e dar ao vizinho.
Contudo, essas três qualidades estão mudando. Nos últimos três artigos que escrevi para esta coluna explorei essas transformações e vale a pena retomá-las rapidamente.
Em primeiro lugar, o uso de banda larga cresce exponencialmente e aplicações web já são uma realidade. Quase tudo já funciona pela Internet e é possível ter uma máquina bastante "limpa" e funcional. Quem parece ter saído na frente nesse mercado foi o Google, que oferece dezenas de serviços web, indo de editores de texto virtuais a um eficiente serviço de webmail, passando pela famigerada rede de relacionamentos Orkut. Tudo integrado. E quando "A virtualização do desktop e a googlezação da web" (http://www.dicas-l.com.br/zonadecombate/zonadecombate_20060926) foi escrito, o YouTube ainda nem havia sido comprado.
Ao mesmo tempo, surgem iniciativas das empresas provedores de acesso para acabarem com a neutralidade da rede. Elas pretendem criar faixas especiais, mais velozes, a serem comercializadas a grandes provedores de conteúdo. Assim, a AT&T e outras pretendem financiar a expansão de sua rede de cabos, oferecendo serviços velozes acessíveis apenas aos grandes distribuidores, criando uma desigualdade antes inexistente. Em "Os donos dos cabos querem controlar a rede" (http://www.dicas-l.com.br/zonadecombate/zonadecombate_20061010), abordei também o traffic shaping, a diminuição proposital da velocidade de serviços como o P2P e voz sobre IP por parte dos provedores.
A cereja no bolo é o Trusted Computing (Computação Confiável) - ou Computação Traiçoeira (Trecherous Computing) termo que parece refletir melhor a natureza dessa tecnologia. O conjunto de empresas que promove essa iniciativa afirma que os computadores se tornarão mais seguros. Mas a realidade é que, por meio de uma série de fechamentos, criptografia e autenticações, o controle das máquina deixará de estar nas mãos de quem a comprou, do consumidor, que ficará impedido de fazer o que quiser com ela, estando sempre dependente da vontade do fabricante. Implantar DRMs certamente ficará muito mais fácil, tanto que diversos pesquisadores afirmam que criar um mercado mais garantido para a cultura digitalizada, o intangível, é o verdadeiro objetivo por trás da iniciativa, e não a segurança. "O que é seu é meu" (http://www.dicas-l.com.br/zonadecombate/zonadecombate_20061106), o que você pensa que adquiriu nunca será de verdade seu, pois o fabricante quer limitar e controlar o uso.
Agora vamos imaginar esses três fatores juntos.
Aplicações remotas, rodando nos servidores de grandes (e poucos) provedores de serviços internacionais; nada de código em nossas mãos, nem os fontes, que se tornaram segredos bem guardados, nem os executáveis. Distribuição veloz de conteúdo só para quem puder pagar; nada de banda veloz para gravadoras independentes e projetos alternativos, só para grandes empresas de mídia e seus megalomaníacos planos de promoção de artistas. Hardware e software integrados em uma bela caixa-preta; nada de ficar instalando software, testar distribuições e deixar a máquina com a sua cara: tudo homogêneo e certificado, funcional como uma geladeira.
Todos os serviços que utilizamos hoje podem continuar existindo: webmail, relacionamento com os amigos, download de música, criar documentos coletivos em wikis, sites com conteúdos redigidos pelos leitores. Mas tudo fica também mais controlado, tudo acontece nos espaços regulados e pré-determinados pelos planos de negócios. Aquela bela idéia de fundo de quintal, que geraria o próximo grande projeto web tem uma chance muito menor de aparecer, pois as condições materiais para isso ficaram menos acessíveis. A banda larga para transmitir, mesmo que para poucos internautas, custa caro. Os códigos de vários softwares livres que poderiam ser integrados para dar forma à idéia genial agora estão nos servidores de alguma empresa. A máquina a ser usada para programar ficou mais cara, já que as mais populares quase nem precisam ter processamento.
É muito diferente de uma televisão? Bons programas até existem, mas a maioria está na TV a cabo. E viabilizar uma idéia, mesmo que para transmiti-la apenas a um público seleto espalhado pelo globo, é muito caro, coisa para quem pode e não para quem quer.
Claro, nada desse cenário é algo definido, que certamente vá acontecer; é somente um exercício de, digamos assim, futurologia pessimista informada. Há muito espaço para resistências - a essas ameaças e a outras que nem podemos imaginar. Muita engenharia reversa ainda será feita, muitos barbudos cheios de ideais liderarão iniciativas tão quixotescas como construir um sistema operacional totalmente livre, muitos garotos ainda vão inventar formas de trocar músicas com pessoas completamente desconhecidas e que vão derrubar os planos de marketing da indústria.
Mas não custa nada ficar atento, nunca se esquecendo que a lógica fundamental das corporações, tenham elas uma imagem boazinha ou não, é obter o máximo de retorno financeiro para cada centavo investido. Fazer isso é só o que exigem os acionistas.
Rafael Evangelista é cientista social e linguista. Sua dissertação de mestrado tem o título Política e linguagem nos debates sobre o software livre. É editor-chefe da revista ComCiência e faz parte de algumas iniciativas em defesa do software livre como Rede Livre, Hipatia e CoberturaWiki.
Para se manter atualizado sobre as novidades desta coluna, consulte sempre o newsfeed RSS
Para saber mais sobre RSS, leia o artigo O Padrão RSS - A luz no fim do túnel.