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Por Rafael Evangelista
Data de Publicação: 25 de Novembro de 2006
No último dia 21, circularam fortemente pelos veículos de comunicação dados de uma pesquisa encomendada pela Associação Brasileira das Empresas de Software (Abes) ao instituto Ipsos. O objetivo era avaliar o programa Computador para Todos, do governo federal. A Abes, que é brasileira no nome, é uma associação formada também por empresas estrangeiras, entre elas a Microsoft e tem feito, desde o início, críticas ao programa.
O Computador para Todos oferece redução de impostos e boas condições de financiamento para facilitar a compra de PCs pela classe C. Uma das exigências feitas aos fabricantes, que ganham com a redução dos impostos, é que esses computadores sejam vendidos somente com softwares livres. A Abes é contra essa exigência e tem afirmado que cabe ao comprador o "direito de escolha" do sistema operacional e aplicativos. A Microsoft chegou a oferecer o seu Windows Starter Edition, aquela versão bastante limitada do sistema, que abre no máximo três aplicativos simultaneamente.
De uma maneira geral, o que a imprensa destacou foi que 73% dos entrevistados afirmaram que trocaram o sistema operacional livre pelo Windows da Microsoft. O título das matérias não variou quase nada, foi de dizer que "Usuários do Computador para Todos trocam Linux por Windows" (Estadão) a "Computador para Todos: 73% trocam Linux por Windows" (IDGNow), passando por "Pirata domina programa de inclusão" (Gazeta Mercantil/InvestNews). No corpo das matérias, quase invariavelmente apareceram declarações do presidente da Abes, Jorge Sukarie, afirmando que o programa priva os usuários de opções. A declaração mais repetida nas matérias derivou ou foi transcrita literalmente de um comunicado do presidente da Abes: "A Abes, em diversas oportunidades, já havia se manifestado no sentido de que a oferta de uma solução única, cerceando a liberdade de escolha do sistema operacional por parte do usuário do programa Computador para Todos, acabaria induzindo e estimulando o consumidor ao grave crime de pirataria de software, cujas penas estão previstas pela legislação federal".
Observando-se as matérias e a pesquisa original, publicada no site da Abes (http://www.abes.org.br/computadorparatodos.pdf), é possível fazer alguns comentários sobre as características da circulação da informação jornalística e sobre a força de alguns atores na promoção de uma determinada leitura dos dados. Não que os dados divulgados não comportem as interpretações que foram divulgadas, mas muita coisa interessante ficou de fora e há a predominância de uma determinada leitura, a da Abes, que é reproduzida em diversas matérias. O resultado são vários artigos tecnicamente corretos - alguns amplos, ouvindo também fontes do governo e empresariais, o popular "outro lado" - só que todos mais ou menos iguais.
Ao que parece, funcionou mais ou menos assim: a Abes divulgou a pesquisa e um comunicado, dizendo que os resultados mostravam que o Computador para Todos com software livre levava à pirataria - praticamente um "eu te disse". Ninguém procurou olhar a pesquisa com mais atenção, buscando outro ponto de vista que não o da indústria. Os entrevistados, por sua vez, muito provavelmente pegos de surpresa, também não conseguiram - ou não tiveram chance - de questionar a visão da Abes. Depois de espalhada as primeiras matérias pelos veículos principais, outros apenas parafrasearam o que foi divulgado.
Há vários fatores que levam a essa dinâmica da notícia pasteurizada e que responde ao interesse de alguns poucos: as redações estão enxutas demais; o jornalista é obrigado a produzir muito e em pouco tempo; é mais fácil seguir a visão de um grande anunciante (ou de uma associação deles) do que buscar um ponto de vista alternativo; as assessorias de imprensa são fortes e entregam releases que são matérias praticamente prontas; entre outros. A tudo isso, soma-se o mito de que, ao jornalista, cabe somente ouvir os "dois lados" que sua missão está cumprida, foi produzida uma matéria "imparcial". Porém, dessa forma, a análise e a reflexão, que servem para basear a abordagem e o recorte a serem dados ao fato noticiado, ficam à cargo de quem emitiu o release. Tentando ser "neutro", o jornalista acaba por reproduzir uma interpretação dominante.
Então vejamos os dados do levantamento encomendado pela Abes. Em primeiro lugar, é preciso falar do método de pesquisa utilizado. Foram realizadas 502 entrevistas por telefone e os entrevistados foram divididos em dois grupos: os responsáveis pela compra e os principais usuários da máquina adquirida. Cada entrevista levou, em média, 25 minutos. Apenas os estados do Paraná e de São Paulo foram objeto da pesquisa - e o relatório não informa a quantidade de entrevistados em cada um. Isso significa dizer que os dados não podem ser extrapolados diretamente para o resto do país, embora sejam indicativos de um processo geral. A margem de erro é de 4,3 pontos, para cima ou para baixo.
Dos entrevistados, 86% afirmaram ser esse o primeiro computador da casa. Do total, a maioria pertence às classes C (56,4%) e D (13,3%), público-alvo do programa, e poucos (dois entrevistados, 0,4%) à classe E. O restante pertence às classes B e A.
É interessante notar que os dois atrativos principais declarados para a compra foram as condições de parcelamento e o preço do produto. Apenas um dos entrevistados declarou ter comprado à vista. Em quinto lugar foi declarado o sistema operacional GNU/Linux pré-instalado como chamariz para a aquisição do produto.
O dado mais explorado da pesquisa foi lido de modo superficial, dando origem à idéia equivocada de que o programa incentiva a pirataria. Dos entrevistados, 73% afirmaram ter substituído o sistema livre por Windows. Porém, destes, somente 1% declarou ter pago mais de R$ 150 pelo sistema. Assumindo-se, como na pesquisa, que um Windows custa pelo menos R$ 400 reais, é evidente que trata-se de uma cópia ilegal. No entanto, isso não significa que é o programa que está levando as pessoas a cometerem a ilegalidade. Na verdade, o Computador para Todos está fazendo com que 30% da pirataria seja evitada, pelo uso de sistemas livres.
Para uma população que tem, de acordo com a pesquisa, renda familiar média entre R$ 2500 (classes A e B) e R$ 1150 (classe C), um sistema de computador que custa, pelado, sem os aplicativos mínimos, R$ 400 não é uma opção. No programa, o GNU/Linux concorre com um sistema que, na prática, ou é gratuito ou custa muito pouco, já que é obtido ilegalmente. E, some-se a isso, o fato de o Windows ser amplamente disseminado e contar com uma rede ativa de "técnicos informais". Dos entrevistados, 18% trocaram de sistema usando serviços da própria loja em que o computador foi vendido, ou seja, o próprio vendedor foi até à casa do comprador e instalou o sistema ilegal.
O Computador para Todos é um programa com deficiências. A principal delas talvez seja a má qualidade de algumas distribuições livres que equipam as máquinas e de parte do suporte técnico oferecido. Mas dizer que o programa é ruim está muito longe da realidade. Ninguém bateu nessa tecla, mas a primeira conclusão destacada na pesquisa Ipsos é que "Computador para Todos tem atingido seus objetivos gerais de incentivo à venda de computadores para a população menos favorecida, através da redução do seu preço primário e da facilidade das condições de pagamento do computador. O programa, de fato, tem atingido a classe C, o público-alvo do programa.".
Calcula-se que tenham sido vendidas, só no início deste semestre, 256 mil máquinas pelo programa. Se imaginarmos que 30% continuam usando GNU/Linux são quase 80 mil computadores por semestre que passam a usar sistemas livres. É um número alto, que contribui para diminuir a diferença entre os sistemas proprietários e livres. Historicamente os sistemas livres nunca corresponderam a mais de 10% dos sistemas instalados. De acordo com outra pesquisa recente, divulgada pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (http://www.nic.br/indicadores/usuarios/tic/2006/rel-geral-04.htm), somente 1,45% dos desktops brasileiros são equipados com GNU/Linux. E essa pesquisa mostra outro dado interessante, que a maior porcentagem de uso está na classe C (1,95%), e a menor na classe A (0,18%).
O uso ilegal de sistemas deve sim ser combatido. No entanto, não cabe ao governo ajudar a distribuir ou oferecer facilidades a um produto que já monopoliza o mercado. Principalmente porque já existe uma alternativa de qualidade, que funciona muito bem, e que institui um sistema de circulação de bens intangíveis muito mais ético e solidário, o software livre. Tendo o computador em mãos, cabe ao consumidor decidir se quer continuar usando o sistema livre ou se quer obter uma licença proprietária a preços exorbitantes. O governo deve fiscalizar e punir as cópias ilegais, mas não pode emperrar ou encarecer um programa de inclusão digital só porque uma empresa quer. Esse programa, inclusive, dá acesso único às funcionalidades do computador, pois inclui não só o sistema operacional, mas também um conjunto grande de aplicativos e seus códigos, livres. Se as máquinas fossem distribuídas somente com o sistema operacional, sem os aplicativos, aí sim haveria incentivo à pirataria, não do Windows, mas dos aplicativos proprietários.
Além do mais, a possibilidade de a Microsoft integrar o programa nunca esteve fechada. Basta oferecer seus softwares com uma licença livre.
Rafael Evangelista é cientista social e linguista. Sua dissertação de mestrado tem o título Política e linguagem nos debates sobre o software livre. É editor-chefe da revista ComCiência e faz parte de algumas iniciativas em defesa do software livre como Rede Livre, Hipatia e CoberturaWiki.
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