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Por Rafael Evangelista
Data de Publicação: 17 de Dezembro de 2006
É provável que este seja meu último texto do ano. E, como os finais de ano são períodos em que cabem as frases grandiosas, vou usar algo que uma professora de minha graduação repetia com frequência: para ver mais longe é melhor sentar no ombro de gigantes. A frase é batida (veja referências a ela na Wikipedia e na WikiQuote), mas a recomendação da professora era que lêssemos, além dos autores clássicos obrigatórios, também seus comentadores, para percebermos melhor a dimensão do que estava sendo discutido.
Bom, esse princípio serve para recomendar a leitura de dois textos publicados recentemente e que acho que mostram as vitórias que o movimento software livre conseguiu nos últimos anos e os desafios que é possível antever para o futuro.
Comecemos pelos desafios.
O professor Pedro Antônio Dourado de Rezende é, desde muito, um incansável batalhador pela liberdade do conhecimento e por uma verdadeira democracia. Ele vem alertando há tempos sobre o dano que podem causar as patentes de software e sobre os problemas de segurança da urna eletrônica brasileira (vale visitar seu site, que contém uma grande variedade de textos). Recentemente, ele me concedeu uma entrevista, publicada na íntegra na revista ComCiência. A maior parte da entrevista disseca o substitutivo apresentado recentemente pelo senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG), mas há um outro trecho que gostaria de reproduzir. Pedro Rezende responde sobre as tentativas da indústria de controlar o fluxo de bens culturais na Internet, usando de tecnologias como DRM e Trusted Computing.
"No contexto da hiperconectividade proporcionada pela Internet o controle da circulação de bens simbólicos só será tecnicamente possível, no sentido de economicamente eficaz, a meu ver com duas ações conjuntas. Uma, a cooptação da indústria dos suportes materiais desses bens - no caso do software, a de hardware -, para a ancoragem física dos mecanismos artificiais de controle de acesso e de escassez. Outra, a radicalização de regimes jurídicos de propriedade imaterial, como o patentário, para a reapropriação ou grilagem dos meios de produção desses bens - no caso da informática, das idéias exeqüíveis por meio de computadores.
Combinado a altos níveis de desemprego, as patentes de software, de sementes, de medicamentos e de modelos de negócio lançarão as cercas dessa grilagem no mundo das idéias, e lançarão os grilhões virtuais das novas formas de dominação e divisão do trabalho, dito cognitivo. Projetos de lei como o CBDPTA, tramitando no Congresso dos EUA, iniciativas como a das patentes de software, tramitando na União Européia, e as aberrações desse substitutivo, tramitando aqui, são elementos dessa estratégia.
No plano geral, essa estratégia é posta em marcha com uma escalada de radicalizações alternadas de leis e tratados que sustentam regimes penais, autorais, patentários e comerciais cada vez mais draconianos, complexos, desequilibrados e herméticos, entre novas rodadas de negociação de tratados regionais, bilaterais, e globais, a pretexto de "harmonizá-las" com regimes anteriores, e entre discursos cínicos sobre as virtudes do Estado mínimo.
A evolução deste cenário é coerente com os que descrevem Orwell e Kafka, na literatura, e a recente série Matrix, na sétima arte. Na sua direção, a geopolítica neoliberal procura conduzir o mundo. Conduzi-lo de preferência consentidamente, pelo fascínio da avareza guiada por vagas promessas de futura abundância. Se ao capital for dado apenas reinar sobre os valores e instintos humanos. A tentativa de explorar esse fascínio se revela nos nomes escolhidos para as novas tecnologias digitais de dominação e controle, tais como DRM e Trusted Computing.
Consentida ou não, só haverá escapatória desse tipo de violência simbólica, dessa forma virtual de totalitarismo, se a sociedade resistir, de alguma forma organizada, ao assalto digital às liberdades individuais e aos direitos civis. Principalmente ao direito das sociedades buscarem sua própria segurança jurídica, contra miragens produzidas por mitos político-econômicos."
Em curso, há dois processos paralelos que visam controlar a circulação da cultura e do código na Internet, um endurecimento jurídico e uma melhor ancoragem física. Controlar a circulação significa garantir a escassez dos bens simbólicos, sem a qual os lucros minguam.
O período atual parece ser de efetiva mudança na Internet, e é nesses momentos que se tenta moldar o padrão dos anos seguintes. Para além do modismo do termo Web 2.0, diversos comentaristas têm afirmado que a virtualização dos serviços veio para ficar e isso deve alterar o cenário atual da tecnologia da informação. Recentemente, o articulista Luís Nassif - um dos poucos que se deu ao trabalho de entender as o modelo de produção e de negócio do software livre - escreveu em seu blog:
"Ao mesmo tempo, o trabalho em rede, que já se consagrara no desenvolvimento do sistema operacional Linux, ganhou a maturidade com o extraordinário Firefox e o Thunderbird. Os aplicativos da web encontraram sua linguagem universal no Java, da Sun. Os aplicativos explodiram depois que a Sun colocou o Staroffice à disposição da comunidade. Agora, o próprio Google começa a oferecer os aplicativos virtuais, que podem ser baixados gratuitamente através da Internet. O Linux avança em desktops. E se tem a oportunidade, pela primeira vez, da massificação do mais perfeito sistema operacional da era dos PCs, o da Apple.
A Microsoft tenta avançar em todas essas frentes. Lançou o bom Live Messanger, tem o Hotmail. Mas não há mais os ganhos de sinergia. Agora, cada produto desses tem um CEO à frente. Só que, em cada frente, há um projeto de Bill Gates dirigindo cada concorrente.
A rede venceu."
Mas o que significa essa vitória da rede? De fato, abundam exemplos das qualidades da produção aberta e colaborativa. Ao mesmo tempo, os sites mais maleáveis, que permitem a contribuição e a interação são os que mais atraem visitantes, pois além de tudo ainda criam uma identificação com o leitor, que se sente parte dele. Nassif fala de um momento difícil para a Microsoft, mas isso significa uma vitória do modelo livre?
Ao que tudo indica, não necessariamente. Embora o padrão Windows dê seus sinais de esgotamento (o lançamento do Vista deve definir melhor isso) a alternativa a ele é perigosa. Virtualizar o software pode marcar um distanciamento ainda mais radical entre o conhecimento (materializado na forma de código) e os usuários. Estes, terão ainda menos controle sobre seus softwares. Muita gente entra em pânico ao dar ouvidos a boatos como "o Orkut vai fechar". Mas o que aconteceria se o Yahoo ou o Gmail resolvessem desligar seus servidores?
Para quem está interessado na liberdade e em ter controle sobre seus dados e software, a dica parece ser procurar a maior autonomia possível. Controlar os espaços virtuais, construir ambientes democráticos e independentes de atuação e interação é uma boa idéia. São poucas as organizações sociais que têm se preocupado com isso, e essa é uma questão fundamental de poder.
Tá aí um belo pedido para Papai Noel: meu próprio satélite de comunicações.
Rafael Evangelista é cientista social e linguista. Sua dissertação de mestrado tem o título Política e linguagem nos debates sobre o software livre. É editor-chefe da revista ComCiência e faz parte de algumas iniciativas em defesa do software livre como Rede Livre, Hipatia e CoberturaWiki.
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