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Por Rafael Evangelista
Data de Publicação: 07 de Fevereiro de 2007
Aqueles que lutam pela liberdade do conhecimento precisam ocupar mais ativamente os espaços oferecidos pelo Fórum Social Mundial. Evento é oportunidade para construir parcerias com movimentos afins.
Estive em Nairóbi, Quênia, no VII Fórum Social Mundial (FSM). Sempre que possível, procuro ir aos FSMs e seus fóruns regionais. Fui aos dois últimos fóruns sociais europeus e só não consegui ir nos fóruns mundiais da Índia e da Venezuela. Tento acompanhar particularmente os debates sobre ciência e tecnologia e, em especial, o debate sobre software livre. A edição África do FSM foi, quase certamente, a que menos discutiu o assunto desde a primeira edição do evento, em 2001.
Para mim, a ligação ideológica entre o FSM e o software livre sempre foi óbvia. Vejo o fórum como um grande encontro de organizações diferentes, que tem em comum a esperança de construir uma ordem social mais humanitária, em que o trabalho seja justamente recompensado e que a produção seja melhor dividida, respeitando-se os direitos humanos fundamentais. Acho que o software livre trata exatamente disso: acesso ao conhecimento, liberdade, condições materiais para produzir, colaboração, solidariedade e justa - nunca excessiva - recompensa pelo trabalho.
No entanto, FSM e software livre ainda não têm uma relação de mútuo reconhecimento como poderia haver. De sua parte, o movimento FOSS (para falar desse grande saco de gatos que envolve desde os libertários de direita do open source até os mais radicais de esquerda) parece guardar uma distância segura. Se pensarmos como o lado mais pragmático, conservador do movimento, essa distância até faz sentido, pois a direita pinta o FSM como um encontro de hippies utopistas e desocupados. Mas aqueles que defendem o software livre pelas suas virtudes sociais não têm porque não participarem ativamente do FSM, que é, sem sombra de dúvida, o maior encontro de movimentos sociais do planeta. Além de ser um espaço de debates, o FSM é um lugar de produção de alianças de movimentos afins.
Nesse sentido, parte do movimento software livre brasileiro já se dá conta que sua luta pela liberdade do conhecimento liga-se com a luta contra o patenteamento da vida. O banco de sementes livres, organizado nas últimas edições do Fórum Internacional de Software Livre (fisl), foi uma aproximação concreta entre dois movimentos que buscam, fundamentalmente, o mesmo: garantir que o conhecimento não seja monopolizado por alguns poucos. Porém, essa louvável iniciativa acontece no fisl, organizada por e para pessoas do software livre, e até agora não significou a construção de uma colaboração consistente com outros movimentos sociais.
Contudo, é preciso reconhecer que, ao longo dos anos, a liberdade do software foi um tema que ganhou progressivamente mais espaço no FSM - oxalá o passo atrás deste ano seja apenas circunstancial. Em 2001, Tim Ney, então executivo da Free Software Foundation, parecia falar grego aos jornalistas da sala de imprensa, ao explicar o que fazia sua entidade. No ano seguinte, Richard Stallman fez rir e pensar uma sala lotada ao fazer sua tradicional performance como Santo Ignucius. Em 2005, porém, já não era mais preciso explicar a ninguém o que era Linux (bem, talvez explicar porque preferimos GNU/Linux ainda seja necessário) e a mesa dedicada ao assunto já misturava software com generosidade intelectual e compartilhamento da cultura. Nela não estavam só hackers, mas músicos, advogados e o ministro brasileiro da Cultura. Naquele mesmo ano, o Acampamento da Juventude hospedou o Laboratório de Conhecimentos Livres, onde geeks, músicos, jornalistas, VJs, escritores e afins construíram ou refinaram relações que devem existir até hoje.
Ao mesmo tempo, a organização do FSM foi gradativamente tomando mais consciência de que falar em outro mundo possível e em novas relações sociais mais solidárias e não usar software livre era uma gigantesca incoerência. É certo que as entidades internacionais que participam do FSM parecem estar muito mais atentas a isso do que as brasileiras. A Rits - entidade atuante na organização e que sempre teve uma postura dúbia com relação ao software livre - e outros grupos foram pressionados pela comunidade a fazerem o fórum se comunicar usando programas livres. Hoje, ainda é preciso avançar no sentido de uma participação mais aberta na construção infra-estrutura tecnológica do evento, além de uma política mais clara de uso e acesso aos dados dos inscritos, mas é evidente que a base tecnológica do evento é livre. Na sala de imprensa, as máquinas não são dual-boot: este ano rodavam Ubuntu. O site da edição africana usou Zope/Plone.
Software livre e Fórum Social Mundial ainda tem muito a ganhar juntos. Nenhuma descrição generalista e difamatória, como as divulgadas pela grande imprensa, faz jus à diversidade e à riqueza do FSM. É lá que se pode perceber como é pequena a distância que separa Shawn Fanning e Percy Schmeiser, DVD Jon e Vandana Shiva, o garoto que quer poder emprestar seus mp3s para um amigo e o agricultor que quer guardar suas sementes de uma safra para a outra. Todos estão lutando contra a transformação do conhecimento em reles mercadoria.
Rafael Evangelista é cientista social e linguista. Sua dissertação de mestrado tem o título Política e linguagem nos debates sobre o software livre. É editor-chefe da revista ComCiência e faz parte de algumas iniciativas em defesa do software livre como Rede Livre, Hipatia e CoberturaWiki.
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