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Por Rafael Evangelista
Data de Publicação: 23 de Abril de 2007
Embora Lawrence Lessig escreva sobre o caráter coletivo da criação, as licenças Creative Commons não questionam a figura do autor e nem seu direito a controlar o destino de suas obras
No último fisl, o oitavo, apresentei uma palestra sobre a questão que abordo no segundo capítulo de minha dissertação de mestrado: a diferença política e discursiva entre os movimentos software livre e código aberto. Terminada a apresentação, uma pessoa na platéia me perguntou como eu encaixava o Creative Commons nisso tudo, que efeitos políticos teria tido a criação dessas licenças e como pensar esse grupo. Confesso que, na hora, dei uma explicação que não me satisfez. Disse alguma coisa meio geral, sobre como o discurso deles era mais próximo do open source/código aberto, mas foi uma resposta meio instintiva, pouco rigorosa e construída mais a partir impressões do que de coisas concretas.
Ainda não tenho uma resposta que sinta ser satisfatória e completa, mas se tivesse que enfrentar novamente a pergunta apontaria a questão da autoria.
Cultura Livre, o livro mais conhecido de Lawrence Lessig, principal figura por trás do Creative Commons, é uma defesa da idéia de que toda a criação contém um componente crucial de re-criação. Dando vários exemplos, ele demonstra que um ambiente de ampla circulação de idéias e com uma adequada regulação dos direitos autorias, a criatividade floresce.
Porém, na ânsia de obter aceitação para seu argumento (e para o sistema de circulação cultural que propõe), Lessig procura o tempo todo se eximir de qualquer postura radical. Embora reconheça, mesmo que de maneira implícita, que em toda obra cultural há uma contribuição de diversos sujeitos, diferentes personagem que, através da história da própria evolução dos estilos, contribuem para aquele resultado final, Lessig não abdica de oferecer ao autor final o controle sobre a obra, de colocá-lo como detentor natural de todos os direitos.
Essa é uma postura que se verifica também nas licenças Creative Commons. Cabe ao autor último - aquele no final do processo de criação - decidir que licença usará para distribuir sua obra; as licenças Creative Commons estão ali apenas para oferecer outras opções além do domínio público e do copyright tradicional. Elas, inclusive, podem variar enormemente nas restrições que colocam, desde as mais permissivas às tão restritivas que permitem apenas o uso não comercial.
O argumento pela popularização dessas licenças, inclusive, não se dá pela justiça de um modelo coletivo de criação, mas sim pela eficiência prática - maior florescimento cultural - da circulação e da liberdade no uso das idéias. A liberdade individual em determinar qual será a licença utilizada se sobrepõe ao reconhecimento de que toda criação é coletiva e de que é direito de todos usufruir do conhecimento e da cultura.
Cabe aqui, então, uma comparação com o modelo e com as idéias do software livre. Sem se importar em ser tachado de radical, Richard Stallman repete frequentemente que todo software proprietário é injusto. O direito a modificar ou estudar um software é tomado como essencial para a construção de um ambiente de cooperação, compartilhamento e solidariedade. Mesmo sem entrar na discussão sobre o caráter da produção do conhecimento - e da cultura, por extensão -, a proposta é não usufruir e nem contribuir para um sistema de produção que não seja justo, que não garanta o direito de re-uso e que não reconheça que a autoria é compartilhada.
É verdade, software livre não significa que o autor abre mão de seu direito autoral e nem que ele perde a liberdade de licenciar seu trabalho como quiser. Porém, se o autor deseja utilizar um código que foi marcado como criação coletiva (ou seja, é livre), deve, no caso das licenças copyleft, oferecer também seu trabalho à coletividade. Para usar de uma criação que foi coletivizada, precisa oferecer seu trabalho à coletividade e, assim, reconhecer que sua produção só pode existir, vir ao mundo, porque outros com ela contribuíram.
Nesse sentido, é válido dizer que o Creative Commons se aproxima mais das idéias do código aberto/open source do que do software livre. As licenças CC não surgem porque a produção cultural proprietária, controlada pelas gravadoras e grandes estúdios, é considerada injusta. Elas são oferecidas aos autores porque aconteceu uma mudança tecnológica, notadamente a Internet, que não está sendo aproveitada em todo o seu potencial gerador de cultura, já que é regida por antigas leis criadas no mundo analógico. O CC não pretende ser um questionamento à idéia de autoria e nem ao sistema de propriedade, apenas ao sistema jurídico. Não serve para confrontar a propriedade sobre a cultura já que não questiona seu fundamento: o indivíduo criador autônomo, que cria a partir do nada e que, assim, não se alimentaria da história.
O que se tem, então, é que, embora tanto as licenças livres de software como as Creative Commons proporcionem alternativas ao modelo proprietário tradicional, as primeiras tendem a criar uma corrente de produção solidária que resulta em questionar o fundamento da propriedade intelectual privada. Já as licenças CC, por serem muito diversas nos direitos que procuram reservar e por centrarem seus argumentos de convencimento em uma opção voluntária do autor, acabam por reconhecer a validade do atual sistema de direito autoral.
Em tempo: não podemos diminuir o valor do Creative Commons no sentido de estabelecer um ambiente muito mais arejado de compartilhamento e usufruto dos bens culturais. Foram avanços enormes nos últimos anos na idéia de que é legal compartilhar. Apenas é interesante colocar as idéias em perspectiva.
Rafael Evangelista é cientista social e linguista. Sua dissertação de mestrado tem o título Política e linguagem nos debates sobre o software livre. É editor-chefe da revista ComCiência e faz parte de algumas iniciativas em defesa do software livre como Rede Livre, Hipatia e CoberturaWiki.
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