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Por Rafael Evangelista
Data de Publicação: 14 de Julho de 2007
Será que interagir e colaborar em espaços proprietários não significa trabalhar sem ser pago?
Mr Mason, que faz um site humorístico chamado Cocadaboa, escreveu em outubro do ano passado, quando o Google comprou o YouTube:
Valor de privatização da Vale do Rio Doce: U$ 3,3 bilhões.
Para arredondar, uns 2 YouTubes (vendido ontem por U$ 1,68 bilhões).
É a época que vivemos... Reservas gigantescas de minério sendo comparadas com uma reserva gigantesca de vídeos com adolescentes de sunga amarela fazendo dancinhas bizarras.
Se o Youtube saísse do ar amanhã, alguém ia sentir falta por mais de uma semana até qualquer uma das outras 500 alternativas se estabelecer?"
O comentário sarcástico de Mason reflete bem uma das características do fenômeno chamado Web 2.0. O termo foi cunhado para dar conta do que seria a segunda geração da internet, grosso modo, essa gama de serviços que promove as comunidades virtuais, a interatividade e o conteúdo construído pelo leitor. Mas a questão é que esses sites, feitos coletivamente, ganharam um alto valor de mercado e hoje são objeto de negociação em bolsas de valores.
Tudo bem, é preciso considerar que a Vale do Rio Doce foi vendida em um processo de privatização mal-executado, e que se fosse vendida hoje seus atuais donos não a entregariam por esse preço. Mas, mesmo considerando tudo isso, salta aos olhos como um site que hospeda vídeos pode chegar a esse valor.
Então voltemos à comparação de Mason. Afinal, o que é o YouTube, o que faz dele algo tão valioso assim? O YouTube não detém os direitos autorais sobre os vídeos que publica. Estes, continuam nas mãos de seus detentores originais (que, por sinal, quase nunca são quem envia os vídeos). O que o site proíbe é a utilização comercial do sistema de acoplamento dos vídeos em outros sites (embedded), o que quer dizer que, mesmo que você seja dono legal de um vídeo que enviou a eles, não lhe é permitido usar o software de exibição do YouTube em seu site comercial.
O real patrimônio do YouTube é um gigantesco acervo de vídeo dos outros. A qualidade, variedade ou esquisitisse desse acervo foi o que levou o site a se tornar uma marca conhecida, associada à idéia de hospedeiro de vídeos. E, se tornando uma marca conhecida, mais vídeos foram enviados ao YouTube. Mas, como diz Mason, se amanhã ele sair do ar, rapidamente será substituído por outros capazes de fazer o mesmo serviço.
Esse mesmo princípio funciona com outros empreendimentos da Web 2.0. Pensemos no Digg.com. Hoje o site é um dos mais influentes da web, qualquer notícia que esteja linkada na primeira página com certeza terá milhões de acessos. Os usuários de maior prestígio, aqueles capazes de usarem sua influência para colocarem um artigo na capa, são hoje assediados por grandes veículos de comunicação. Vale lembrar que o Digg não republica as notícias, apenas oferece o link para elas e hospeda uma área de comentários para os usuários. São os usuários que oferecem seu tempo e trabalho, ao caçarem boas reportagens e debaterem os assuntos.
Todo esse tempo e trabalho não se desmancha no ar, se materializa no valor de mercado das empresas donas dos sites.
No século XIX, Karl Marx desenvolveu um conceito chamado mais-valia. Explicando-o muito rapidamente, seria a diferença entre o que um operário produz e o que ele realmente ganha. Por exemplo: um marceneiro produz 15 cadeiras em um dia de trabalho, estando aí descontados os custos de produção, o aluguel das ferramentas, o custo da estrutura de venda, a logística de distribuição das cadeiras etc. Porém, ao final do dia, o operário recebe apenas o valor de 8 cadeiras. Essa diferença é a mais-valia; e vai para o bolso do patrão. Essa diferença não é representativa da quantidade de trabalho de gerenciamento executada pelo patrão, isso já foi descontado como custo de produção. É o lucro mesmo, aquilo que faz com que o dono da empresa, trabalhando as mesmas horas que um funcionário seu igualmente qualificado, ganhe mais.
Ao acompanhar a valorização exponencial dos empreendimentos 2.0 não dá para deixar de pensar que há uma mais-valia sendo extraída. O modo como ela é incorporada, como se materializa em lucro para alguns poucos, é algo a ser melhor entendido, porque a natureza da produção cultural é outra. Mas ao ver grandes portais abrindo espaço para que os leitores construam o noticiário, porém sem dividir os lucros do empreendimento, é o que vem à cabeça.
Esse processo não é necessariamente negativo, não pela abertura proporcionada. Quando o Digg, com medo de processo legal, tirou de sua página o código de quebra do HD-DVD, os usuários se revoltaram e fizeram valer sua voz usando do espaço oferecido pelo próprio Digg.
Só que esses sites colaborativos não necessariamente são bens-comuns. Pelo contrário, a maior parte gera lucro, altos lucros, tendo como matéria-prima o tempo e o talento dos usuários.
Marx dizia que o operário recebe não o valor que produz cotidianamente, mas apenas a quantia necessária para que continue vivo e disposto a vender seu trabalho. Talvez dê para fazer essa comparação. O usuário não ganha o acesso livre a todos aqueles bens culturais que pode consumir (uso a palavra livre no sentido das liberdades do software livre, de uso, cópia, modificação, estudo), recebe apenas o suficiente, em acesso, para produzir naqueles espaços delimitados e de maneira complementar, acessória.
É possível ter espaços colaborativos que não extraiam essa nova mais-valia (2.0). Um dos exemplos é a Wikipédia. Tudo o que está lá tem licença livre e, se eu quiser, copio tudo e coloco em um site novo (mantendo a licença livre e as referências à autoria). Mas ninguém nem sente a necessidade de se fazer isso, porque com a licença livre toda a informação ali vira algo de todos. E é possível complementá-la e melhorá-la, posso usar aquilo para fazer um livro didático, por exemplo, revisando os itens que desejar.
Talvez tenha sido algo não-intencional, mas quem primeiro teve essa preocupação em tratar a informação como bem coletivo foi o movimento software livre. Por mais que um monte de empresas lucrem com o código livre e que ele não deixe de ter seus "pais-autores", uma vez distribuído ele se torna algo apropriável por todos (pois o uso é livre e a modificação também).
Isso, de alguma maneira, reequilibra a relação. Forma-se uma espécie de matéria-prima informativa pública, uma base de conhecimento sobre a qual todos os programadores podem trabalhar e usar para criar mais conhecimento, também livre (se a licença original for copyleft).
Se todos os vídeos publicados no YouTube fossem livres teria ele o mesmo valor de mercado? É difícil dizer. Boa parte do que está lá pertence a algum grande estúdio ou uma grande gravadora, e o que usuário ofereceu foi seu próprio nome como possível alvo de processo por pirataria, já que é ele o responsável legal. Essa, inclusive, pode ser uma das formas dessa mais-valia 2.0, o usuário como laranja da violação de direito autoral proporcionada pelo site.
Mas, certamente, a colaboração em espaços que usam licenças livres rivaliza com os espaços de produção proprietários. E, principalmente, ajuda a tornar o conhecimento da humanidade mais livre, acessível e, muito além de ser mero produto para um consumidor passivo, ponto de partida para mais produção livre.
Rafael Evangelista é cientista social e linguista. Sua dissertação de mestrado tem o título Política e linguagem nos debates sobre o software livre. É editor-chefe da revista ComCiência e faz parte de algumas iniciativas em defesa do software livre como Rede Livre, Hipatia e CoberturaWiki.
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